O dia todo pendurado no muro, batendo os braços como
asas. Desce quando a fome aperta.
Porém, antes dele mesmo começar a preparar sua comida,
pega o diário e começa a escrever como que para suavizar a sua dor.
“Ela me chegara como uma princesa numa carruagem de fogo.
Pelo estado, fugira no momento exato do sacrifício.”
- De onde você
veio, hein, menina? O que você veio fazer aqui, justo no meu quintal? Que é
isso preso na sua pata? Deixa eu tirar...Pronto.”
“Quando desatei o cordão, parece que ela deu uma
risadinha. Dessas que a gente solta por alguma liberdade conquistada. Essa
impressão não disse pra mulher. Ela é cética pra essas percepções. Mas alguma
coisa a mais me tocava, algo parecido com um sentimento íntimo que não ousava
dizer seu nome. Deixei aquilo pra lá e fiquei olhando aquele ser inesperado.
Naquele dia já decidi seu nome. Seria Maria Luísa da Áustria. De onde me veio
esse nome? Da segunda esposa de Napoleão Bonaparte. Ele tivera as primeiras
núpcias com Josefina Tascher de la Pagerie, que fora casada por sua vez com o
visconde de Beauharnais. Napoleão divorciou-se de Josefina, em 1809, para
casar-se com a esplendorosa Maria Luísa da Áustria...Assim, decidi que esse
seria o nome..”
“Na hora, a esposa apareceu e ficou me observando.”
– De quem será,
hein, Mariano?
– Olha, nunca vi essa galinha aqui.
– É, eu também
não. Não conheço quem crie galinha por aqui.
– O negócio é
deixar ela por aí. Quem sabe o dono aparece.
– Olha, por mim
a gente deixa ela engordando. Quando tiver no ponto, a gente faz um cozido. Faz
tempo que a gente não come galinha, né?
Dá até água na boca.
“No outro dia, despertamos com a galinha em cima da cama.
A mulher assustou-se”.
– Sai, sai
daqui, seu bicho escroto!
- Deixa ela.
Assim você machuca a coitada.
– Ora, Mariano,
é só uma galinha. Bicho tem que ser tratado como bicho. Deixa eu ir me lavar logo, antes que eu fique
toda cheia de doença.
“Assisti ao jogo com a galinha no colo. A mulher limpava
a casa e ficava me encarando. Começou a encrencar com Maria Luiza.”
– Dá pra você tirar esse bicho daqui.
– Ela não é bicho, ela é um ser vivo.
– Ser vivo ou não, dentro de casa não é lugar
de bicho.
– Esta casa também é minha.
– Só que é a escrava aqui que limpa.
– Quem é que sustenta a casa?
– Se eu começar a cobrar o que você me deve,
você não vai ter dinheiro pra me pagar.
– Eu sou homem.
– Um homem parasita. Desde que se afastou,
você não..
– Se eu tou afastado, é porque eu tou doente.
Não dá pra eu fazer nada.
– Mas, Mariano. Você não percebe? Você está
ficando maluco? Isso não é coisa de gente normal.
– O quê?
– Você com essa galinha.
– O que tem isso? E aquele gatinho que você
tinha?
– O Ludovico era tratado como animal
doméstico. Eu não vivia o tempo todo com ele.
– Cada um expressa o que sente de uma forma.
– Toda pessoa normal tem limites.
–Agora, só por causa disso, eu vou fazer uma
casinha aqui dentro só pra ela. Diacho!
“A mulher sai com raiva. Sento no sofá e faço carinho em
Maria, que está assustada. Naquele dia, a mulher estava possessa. Fui condenado
ao isolamento. Eu e Maria Luisa da Áustria. Ficamos os dois, feito um casal de
namorados cujos pais saíram. Acabamos adormecendo no sofá. Com dores no corpo,
acordei às treze horas do outro dia. A mesa já estava posta. Nem precisei
colocar pratos e talheres como sempre colocara. Sentei para almoçar com Maria
ao colo. Fiquei só na sopa. Sorvia uma colherada e dava a outra pra Maria. A
mulher do outro lado, bruxa da Disney, nos encarava.”
– Você quer
parar de olhar assim.
– O olho é meu.
– Eu sei que o olho é seu.
– Então, se ele é meu, eu olho pra onde
quiser.
– Você tá deixando a Maria Luísa encabulada.
– Era só o que faltava.
– Se a coisa continuar assim....não sei não.
– Não sei não o
quê? Também não gostei do que você fez ontem.
“Saí com Maria pro quintal. Brincamos muito. Nem vimos o
tempo passar. Quando escureceu, fomos pra sala ver as novelas. Depois,
assistimos sem assistir, olhamos sem ver o jogo do. Comé mesmo? Dormimos. Às
seis horas do outro dia, acordei, olhei pro lado e senti a falta de Maria.
Corri ao quintal.”
- Maria Luísa!!
Maria Luísa!!
“Passei pela mulher na cozinha. Insight”.
– O que você fez com ela?
– Eu? Ainda, nada. Mas você tem que se
desfazer logo dessa ...dessa....Esta casa está empesteada com o cheiro dela.
Isto aqui ta parecendo um galinheiro. Por mais que eu limpe, a casa perdeu o
cheiro de gente. Acho que até você tá se tornando um bicho.
– Já que é
assim, eu vou dormir lá fora.
– Vai, vai!
Assim, o cheiro fica melhor! E se você quiser, eu levo milho. Pros dois.
“A minha relação com a mulher parecia sem possibilidades.
Já com Maria Luísa havia uma delicadeza. Parecia que ela me entendia. O seu
olhar adivinhava meus pensamentos. Não havia necessidade de verbalização. O
entendimento entre nós era completo. Depois de meia-hora, a mulher aparece.
Está diferente, alegre como nunca esteve.”
- Mariano, meu
bem, vem pra dentro. Olha, não liga pra minha irritação, não? Sabe, é que eu
tou naqueles dias. Sabe como é mulher, né? Entra, vai. Pode trazer ela.
“Estranho a mudança da mulher, mas, como sempre fui pelo
entendimento, entro com Maria agarrada ao colo.”
– Como ela está bonita! Deixa eu pegar ela um
pouquinho, deixa?
– Eu, hein? Você nunca gostou dela. O que tá
dando em você?
– Nada, ué? Eu não posso mudar de idéia?
– Poder, pode. Mas, essas coisas levam tempo.
Mudar, assim, de uma hora pra outra, nunca vi.
– É que eu pensei melhor e...
– Viu que tava fazendo besteira.
– Isso, foi isso.
“Baixei a guarda. Tudo pela concórdia.”
– Tá bom. A gente vai te dar uma chance.
– Ela é uma ave tão diferente, né?
– É, é mesmo. Notei
isso desde o primeiro dia.
– Sabe que ela se parece com gente?
– Também acho isso.
– Você acredita em reencarnação?
– Não, o padre diz que isso é coisa do diabo.
– Diabo é ele. Você sabia que ele pega
menininho atrás da igreja?
– Também tem aquele pastor que tirava o
demônio transando com as irmãs.
– Você tá falando isso por quê? Não sou
evangélica.
– Eu sei. Falei por falar. Você é que começou
a falar em reencarnação.
– É que essa galinha.....
– Essa galinha o quê?
– Eu sei que..
– O quê?
– Eu sei que ela não tem culpa, mas...
– Fala de uma vez.
– Ela parece uma reencarnação daquela sua
namorada olhuda.
– Aquela que você humilhava nos bailes?
– Eu? Você tá muito enganado. Eu é que era a
vítima. A humilhada era eu.
– Ta, tá. Mas
isso é uma grande besteira.
– Tá, vamos
esquecer isso.
– Por mim, eu já tinha até esquecido.
- Sabe que eu até pensei em fazer um
travesseirinho pra ela?
– Boa idéia.
– Já que você vai fazer a casinha...
– Você faz os acessórios.
– Isso, afinal
nós somos uma família, né?
– Olha só! Tou gostando de ver. Minha
esposinha voltando a ter juízo. Olha, sabe que eu não tinha mais esperança?
– Vamos esquecer as desavenças. Dá aqui ela,
dá?
– Toma, mas cuidado que ela ainda tá magoada.
– Pode deixar que já, já, eu faço ela
esquecer. Né, meu amor?
- Amanhã, vamos acordar uma família mais
unida. Isso merece uma comemoração. Amanhã a gente compra um vinho, pode ser
desses vagabundo, e faz a festa.
“Era bonito ver aquilo. Talvez houvesse um jeito de
convivência. Sabia de famílias por aí que viviam bem a três. Finalmente, eu
gozaria a paz. A paz de uma família moderna. Duas fêmeas e um homem. Como
naquela novela.”
“Uma semana se passa. E na sexta-feira o inesperado
acontece. Acordo, olho pro lado e sinto um nó na garganta. Procuro a mulher em
desespero. Acho-a sentada, devorando uma coxa suculenta.”
– O que aconteceu com ela?
– A tua amante?
– Fala! O que você fez?
“A mulher come a coxa, de modo sensual e provocante,
exibindo o seu crime. Acendeu o fogão e se deliciou, girando a coxa de Maria
como um inquisidor se deliciava outrora, vendo bruxas sob as fogueiras.”
– O que
você.....
“Encontrei no lixo
as tripas e a cabeça de Maria. Mas tenho certeza que não era dela. Maria Luísa
tinha mais elegância, uma nobreza de Imperatriz. Era macia, como uma nuvem
feita por Deus. A qualquer momento, ela vai surgir sobre a minha cabeça, numa
carruagem de fogo, voando novamente em meu quintal, cumprindo a profecia do
coração. E aí então eu poderei recebê-la com toda a minha ternura, com todo o
meu amor. Tenho de voltar ao muro. Ouvi alguma coisa. Com certeza, ela se
aproxima. Sinto seu cheiro, o calor de sua presença. Sinto o frêmito de seus
olhinhos infantis. Ela me chama, sussurra meu nome. Não posso desapontá-la.”
Com agilidade de um galo inconsciente, pula pra cima do
muro e cacareja de angústia amorosa.
Um galo do vizinho parece até que entende aquela tristeza e grita humanamente, em solidariedade.
Um galo do vizinho parece até que entende aquela tristeza e grita humanamente, em solidariedade.