sábado, 27 de outubro de 2012

VAIDOSOS DE PALESTRA

Estava eu pisando nos vestidos da noite com minha cadela preta quando vimos um cão palestrando com as sombras dos sapatos da lua.
Parecia um cachorro muito culto. Talvez seja um daqueles cachorros.....Não, não é nada. Não acreditem em mim.
Não sei a causa de desperdiçar com as sombras seus canídeos conceitos.
O fato é que me senti atraído pelo que expunha.
Acabara o cão de dar a palestra quando o interpelei:
- Bela palestra!
- Não precisa puxar o meu rabo!
- O que é isso, meu amigo?
- Fiz essa palestra como um teste. Não quero fazer mais.
- Mas foi tão produtiva. Você falou sobre...comé mesmo? Ah, sim...das nuances da.....do como .....sei lá, foi demais!
- Este é o problema. A escrita é individual. O escritor não tem que se envaidecer. Tem apenas que viver. O tempo do escritor em palestras poderia ser empregado pra escrever ou ler. Um escritor não pode palestrar com verdades de carteirinha.
- Por que de carteirinha?
- Você não entende? No momento da palestra posso ter sido responsável por matar um escritor de futuro. Posso ter acentuado uma momentânea covardia. Ele pode ter se constrangido com meu conhecimento, que ainda tá se construindo e que eu posso resolver apagar como fez aquele filósofo, o Wit....... E não adianta você dizer que se ele desistir é porque ele não tinha direito a um futuro. Porque eu lhe dou uma patada.
- Mas e os outros?
- Os outros são pessoas que querem sair daqui com a sensação de terem escutado um gênio literário. A porra de um gênio literário de merda. São uns vaidosos de palestra. Já ouviu falar? Precisam de ícones.
- Você quer um osso? Tenho um aqui, ó...
Saí correndo. Quase mordeu minha mão.


sábado, 13 de outubro de 2012

ESCULTURAS PENADAS


Quem passa, à meia-noite, pela Praça do Escritor Maior, se está sintonizado com as forças paralelas da vida, ou mesmo se apertar um pouco os olhos, ou espremer um pouco a alma, notará a tristeza que assalta certa personalidade, considerada em vida um dos grandes escritores de São Paulo, quiçá da Nação Brasileira.
Ali o vi quando voltava da casa de uma cunhada. Me aproximei de seu busto como quem não queria nada. Não fiz as perguntas de praxe por conhecer o Escritor Maior de longa data, nos meus muitos momentos de solidão lilterária.
Fiz-lhe uma pergunta de supetão:
- Meu mano ( não estranhem essa intimidade, não há frescuras entre nós), o que lhe deixa triste como a voz de um sino?
- Ah, Nato (assim só me chamam os íntimos da família), olha essas pichações! Só de imaginar que em vez do meu busto poderia estar aqui o do Menino Fininho, personagem que criei. Ainda bem que é o meu busto que aqui está..
- Mas, Afonso, são os vândalos. A culpa é da falta de educação. Os meninos que fazem isso tiveram pais ausentes e....
- Quisera crer que fosse só isso....
E  ficou soluçando bastante. Parecia que seu soluço se estenderia por toda a madrugada. Cada lágrima sua era uma gota pesada de melancolia.
Meus olhos estavam pesados, em petição de miséria. Como o resto do corpo.
De súbito, ouvi um barulho de bigorna sendo arrastada. Um vulto. Gritei:
- Quem vem lá?
- Apenas um operário arrastando uma bigorna e trazendo uma placa de bronze no pescoço..
- Peraí. Tou te reconhecendo. Você não tava na Praça das Indústrias, na frente do Teatro Municipal?
- Uns vândalos roubaram meu corpo-escultura, mas, eu – a alma daquela obra - consegui escapar. Tenho medo de voltar pro mesmo lugar.  Além do mais, nem sei o que fizeram de meu corpo-escultura. Aqui, vivo a arrastar esta bigorna toda madrugada. Porém, não faço mal a ninguém. E só os sensíveis como tu percebem.
- Por que aqui?
- Porque esta praça é simbólica pra nós, esculturas. Aqui fica o busto do valoroso Escritor, que amou esta terra como poucos. Por milagre, ainda não foi roubado.
- Tá bom. Entendo. Pode continuar seu caminho. – E me sentei.
- Daqui há pouco. Por enquanto, quero me sentar um pouco. Posso me sentar a seu lado?
- Pode.
- Ontem, encontrei a alma do busto de Getúlio Vargas. Vive a rodear a praça que leva seu nome, deixando, volta-e-meia, a cabeça cair...
- Sei. Deve ser porque roubaram a cabeça de seu busto.
- Veja que situação triste. A violência contra nós, esculturas, não tem tamanho. É um descalabro.
- E onde andará a alma do busto do Grande Jornalista, que ficava na entrada da cidade?
- Não sei.
- E a escultura que ficava sobre o obelisco da Praça Taquaritinga?
- Que inferno! Como eu vou saber?
- Calma, foi só uma pergunta...
A alma da escultura do operário se levantou e continuou a arrastar sua bigorna. Fazia um barulho horrendo.
Acabei adormecendo ali mesmo, quase ao lado do busto do Escritor, que se aquietara.
Quando acordei, olhei no celular e já era meio dia.
O que iriam dizer no meu serviço? De novo, o aluado chegando atrasado. Nenhum deles iria querer saber das minhas insônias constantes.
A meu lado, percebi uma série de rostos. Uma mulher sem dentes. Um homem fedorento. Uma criança de peito. Eram, pelo que percebi, mendigos que ali encontraram espaço, por enquanto, até serem expulsos ou encontrarem abrigo em outra praça.
Quando olhei a criança, me veio à mente um fato que lera no depoimento de um vereador eleito. Um fato que ficará comigo durante muito tempo. Ele vira uma criança pegar uma chupeta que caíra numa vala e pôr à boca. O que posso fazer a respeito desse fato? O que podemos fazer?
Senti debaixo de mim uns jornais. Na certa, aquela mendiga de olhar mais gentil os colocara.
Peguei um dos jornais e li que está sendo feito um levantamento das depredações nas praças para um programa de recuperação. Que bom. Talvez essas almas de esculturas penadas tenham paz.


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

PARA A MULHER DO FUTURO

Uma garota de quatorze anos ao norte do Paquistão. 
Uma garota que, na florescência de seus quatorze anos, briga pra que as mulheres paquistanesas tenham escola, entre outros direitos.
Com onze anos, a jovem escreveu um blog a BBC descrevendo o domínio do Talebã em sua região, protestando contra o tratamento dispensado às mulheres e clamando pela paz entre Paquistão e Afeganistão. 
Com onze anos, vejam bem!
Malaia mostrou ao mundo que as jovens paquistanesas não compactuam com as leis impostas pelo Talebã.
Então, um homem parou a van e atirou.
Malaia Yousafzai levou um tiro na cabeça no caminho da escola para casa. 
Quantas mulheres não foram queimadas, esmagadas, enterradas, ao longo da história, em nome dos valores patriarcais embutidos nas religiões dominantes!
Antevejo ainda muitas dificuldades a serem enfrentadas pelas mulheres. Não vejo muita diferença entre as mulheres daqui e as dos países misóginos que citei.
Aceitam a inferioridade de serem, no máximo, costelas. Não obstante, haja exceções.
Temos mulheres maravilhosas, mas, muito satisfeitas em serem espelho de santas, de virgens. 
Usam a mesma lógica aplicada pelos especialistas, em grande parte, homens, na análise dos livros religiosos. 
Uma lógica inteligente, inobstante falha se analisada com espírito de justiça. 
Um espírito de justiça que deveria considerar tanto o feminino como o masculino.
A Justiça Divina, pela dita Onipotência, Onisciência, se analisada com rigor, determinaria que viessem como Filhos de Deus um Casal Redentor, por ser isso mais igualitário. O homem e mulher só existem como gênero pela igual participação dos gametas masculinos e femininos.
Então, toda história de criação do mundo, seja nos mitos ou verdades ocidentais e orientais, deveria ter outro caminho, se considerassem esse ponto de vista.
Entretanto, a base de muitas de nossas verdades é patriarcal, trazendo como resultado o predomínio do "pai" até nas expressões linguísticas.
Mas, acredito no crescimento da Mulher. E esta crescendo nos ajudará a crescer. Morrerei antes que isso aconteça do modo que imagino.
Espero que nós, homens, não acabemos como o mundo antes disso. Entre nós, homens, coloco também essas mulheres que comungam de todo o legado patriarcal.
A Mulher que desejo no futuro, ao lado do Homem procurado pelo filósofo Diógenes, não terá réstias de um passado injusto.
Porém, sei, que, até lá, é necessário que surjam muitas mulheres maravilhosas, como a pequena Malaia, como Chiquinha Gonzaga, como Simone Beauvoir, para, com suas células, constituirem o Corpo da Verdadeira Mulher Companheira do Homem, que surgirá, moldado pelas lutas Dela.
Malaia, nós, os que esperamos, te saudamos!
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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

KYU - ABUSO SEXUAL


Sabe, Kyu, uma cadela como você não existe. É como se eu tivesse falando com uma pessoa. Por isso, não sinto vergonha. Pode alguém me ver falando contigo, que não tou nem aí. Você é meu diário animal, isso.

Sabe, eu tava navegando ontem e fui ver a origem de sua raça... Caraca, a porra do cigarro acabou...Bicha, fiquei entusiasmada. Você é quase gente. Pode acreditar. 

Tua raça é surpreendente. Diz que você se liga com um dono só. Vai vendo. Fica ligada nele até a morte. Falar nisso, desencosta um pouco. Espero que você me deixe um pouco livre. Não gosto de amor obsessivo.

Hoje, Kyu, o dia foi de matar. O lance pior foi o ciúme do Bereco. Poxa, o cara não tem confiança em mim. Não sei até quando vou agüentar. Pensei até em terminar o namoro. Pensei não, penso.

Foi assim, me escuta: a gente foi no Kareca’s Bar só pra terminar o programa. E chegando lá, quem a gente encontra? Diz. Você nem imagina. O Mauro, meu antigo namorado. Aquele, o do mesclado. O ex-viado que se tornou pastor. Da Igreja Deus só Deus.

Mas, vê bem, Kyu. Não tira conclusões precipitadas. O Mauro tava com a Lia. Sabe, a Lia? Eu já te contei sobre ela. Bonitona, loira, corpo turbinado, dentes lindos. Mais razão tinha eu de ficar enciumada. Os olhos do Bereco quase furavam o sutiã da loira.

Que homem que chega perto dela e não encara aqueles peitos? Eu vi ele encarando. Mas não liguei. Você não acha que eu...Eu disse ho-mem, sua cadela!

O Bereco devia tar zicado, doidão. Ficou a todo momento provocando o Mauro com seu conhecimento de AC/DC, The Doors, Rolling Stones, etc. etc. E o Mauro, trouxa, aceitou o desafio. Rolou um papo chato que só você vendo.

A Lia? A Lia entrou na discussão. Talvez quisesse mostrar que não era só corpão. Mas suas observações sobre bandas eram bem chinfrim. Nessa disputa de egos, me esqueceram.

Eu pensei: quer saber, vou pro outro lado. É que do outro lado do bar eu já tinha visto uns amigos meus do teatro. E eu precisava de cigarros. O meu maço acabara.

O Bereco nem notou minha saída... Kyu, tá cheirando o quê? Vem cá, presta atenção em mim, senão eu compro um diário e não te dou mais carne. 

Ah, agora, você se tocou, né? Falou em carne, tu já se vende. É falar em carne e passear, tu já contorce o fiofó. Parece umas amigas minhas. Falou em homem e rolê, elas já vestem a calcinha mais apertada, ou nem usam.

Gostou da perna do padrinho?

Cara, quando cheguei na turma do teatro, foi aquela festa. Perguntaram se eu não ia voltar. Eu disse que tava com planos pro outro ano. Na verdade, aqui pra nós, tinha decidido nunca mais fazer teatro amador.

Já foi meu tempo. Não que eu seja velha. Entrei no teatro por causa de um carinha. Acabou que o namoro terminou e eu continuei fazendo peças e gostando. Modéstia à parte, sou boa atriz. Só que fazer teatro nesta cidade é uma luta sem resultados. 

O teatro tá sempre na cauda do cavalo do bandido que faz arreglo com o Poder Público. Sabe o que é arreglo? Sei lá, meu pai falava essa palavra e eu me espantava. Deve ser....acordo. Não tenho certeza.

Bem, falei pro Ivan, meu brother, o mais velho da turma, que talvez no outro ano eu encenasse e ele me propôs um trabalho. Quer dizer, não era um trabalho com produção. 

É que teatro amador na maioria das vezes é quase um sacerdócio, com apoio e patrocínio mixuruca, às vezes, até, de próprio bolso. E exige ensaio, ensaio e mais ensaio. 

A gente tem que gostar da proposta, do projeto. E eu gostei do plano dele de ensaiar O Balcão, de Genet.

Papo vai, papo vem, o Ivan me contou que tem um pessoal profissional aí querendo acabar com os amadores. Pra mim, essa corja não é profissional. 

Profissional que é profissional reconhece a importância dos amadores. São os amadores que se atrevem em novas estéticas sem medo de perda financeira. 

E muitos profissionais começam como amadores. Então aqueles do contra não são profissa. Nem merda são. Merda é expressão 
teatral. Esses pretensiosos são tóxico. Sulfetos. É, são sulfetos.

Falei pro Ivan que nosso teatro na cidade precisava ser mais combativo, andar com as próprias pernas, buscar verbas nas leis de incentivo, etc.

Nesta cidade, como em todas as outras, eu acho, a Arte que sobrevive é a que se deixa cooptar, é a que se vende, a que propaga as obras públicas, a que usa textos angelicais, de datas cívicas, que consegue engatar uma encenação da história da cidade, como aquele grupo, o Sem Tesão Não Tem Perdão.

Eu falava e pensava no Bereco. O safado continuava lá. Nem notou os olhares do Ivan pras minhas pernas. Sorte do Bereco que eu já sabia qual era a do Ivan e eu não curto orgias, entende, Kyu, não curto, mesmo.

O Ivan é liberal demais pra mim. Já me sinto insegura em toda relação que tenho. Imagina eu com o Ivan. Ia ser um inferno.

Fiquei doida com o Bereco. O cara tava bebadaço. Que falta de medida. Não notava que o Mauro tava se chegando demais nele?

Será que o Bereco é....Não, o soco que ele deu no Mauro me convenceu. Apesar de estar pra lá de Bagdá, foi certeiro. Tiraram ele dali. A loira notou a chegada de alguém. Foi para o lado oposto. 

Era o Jorge que chegara. Um primo que não dava folga para ela. Não gostava de vê-la em certas companhias. Principalmente de Mauro que, segundo ele e a torcida da Seleção Brasileira de Futebol, cortava dos dois lados, e era fornecedor de drogas pesadas. A polícia tava apertando o cerco em cima dele até.

Então, decidi acompanhar a viagem do pessoal do teatro. Nem falei com o Bereco. Tava chapadão o idiota. Sem controle, cara. Até crack curtiu. Fiquei num veneno. Se ficasse só na maconha...

Fomos pra uma porção de bares antes de ir parar na Praça Independência. Uma nuvem de maconha nos cercava. Mas eu não deixava de pensar em mim e no Bereco. Não somos tão iguais quanto eu pensava. Somos água e vinho. Às vezes, dá até certo pra um suco. A gente nem assim. 

O Ivan começou o ritual. Um ritual que nunca aceitei em teatro. Sempre fui meio careta. O pó foi passando de punho pra punho e eu só fiquei numa latinha de cerveja.

Todo mundo começou a rir e tagarelar. Todos discutiam sem chegar a lugar nenhum.

Tava olhando pra eles e me toquei que ali eu só conhecia o Ivan. É que teatro é muito dinâmico. Ficam bastante tempo apenas os raros. De duzentos que entram num ano, sobra um depois de quatro anos. Pode acreditar, é isso. Pura realidade, Kyu.

O Ivan sempre teve idéias teatrais de conteúdo. Mas tinha uma fraqueza pelo fumo e mais ainda pelo pó que era um carcinoma.

Se o Ivan fosse mais ajuizado e fosse pra São Paulo, lá ele seria reconhecido. Um cara com o talento dele tava mofando aqui nesta cidade.

O problema é que ele tá ficando velho. Quarenta e sete. Teve um rolo com a minha mãe, que hoje posa de séria, mas, foi uma fumaceira entusiasmada. O que os uniu foi o entusiasmo teatral. Só acho que ela devia era ler mais. 

Caso o Ivan fosse mais careta, dava mais certo. Se só bebesse. Sabe, a centelha de Dionísio? Ivan tem Dionísio. É um cavalo de Dionísio.

Quando comecei a ficar sem controle e os amassos começaram, pedi licença e me mandei. O Ivan tentou me beijar a força. Dei-lhe uma joelhada. Sei que ele me perdoará.

E você, Kyu? Está feliz com o rim que eu te dei? Gostoso, né? Seu focinho tá melado de rim. Sempre gostei de rim. Quando vivo, o dono desse rim que tu comeu só andava a pensar sacanagens. Foi o Bereco que ajudou a tirar ele.

Hoje, o dia foi um porre. Foi o pé esquerdo, recolhi o direito e acordei azeda. Um limão. Um, não. Muitos limões. Acorde com a cara verde. E o dia seguiu. Todo pra baixo.

Sabe o quero agora? Ouvir Radiohead. E Coldplay. E um pouco da Lythium. Pra azedar mais ainda.

Pensando melhor, Kyu, quero ouvir tipo música de funeral ou aquele tipo de musica que envolve um iniciante de filme de terror...

Não tou bem. Tou um saco. Gritei com minha mãe. E ela é uma santa. Não merece meus chutes. Sabe que ela faz teatro desde a década de setenta? Parou bastante no meio do caminho. Pra me criar. Cuidar de mim.

Na sexta pra mim, foi barra. No serviço, um cara chegou, um empregado da manutenção, sacou de um canivete e ameaçou todo mundo no RH. Minha mãe até conhece ele. Fez teatro com ela. Acho que até tiveram um trelelê. Eram jovens. 

Hoje, ele é um alcoólatra. Deve dar um arrependimento nela. Ele não esquece e quando tá possuído pela jurupinga vive dizendo que comeu minha mãe e que ela tinha um rabão que pelo amor de deus...

Quantas vezes, no serviço, noticiaram que ele morreu. E ele sempre aparece pousando de vivo. “Ainda não é agora que a vermelha me pega”. Chama a morte de vermelha. Será que ele acha que a morte é comunista?

Fico pensando se ele era carinhoso com as namoradas. Ainda pergunto isso pra minha mãe.

Se eu soubesse que ia casar com um cara assim, não casaria nunca. Mas a vida é assim. Só vivendo se aprende.

Será que o Bereco vai largar as drogas? Um dia me disse que preferia elas a mim. Fiquei puta.

Será que eu me casaria com o Bereco? Não. Deus que me livre.

Ainda tenho de estudar muito. Minha mãe fala que eu preciso me centrar nisso. Diz-que a mulher estudada se decepciona menos.

Atualmente, o Bereco tá me decepcionando. Tem uns valores muito materiais. E eu começo a me interessar por política.

Ele diz que começou a namorar comigo porque eu era inteligente como as outras não eram. Mentira. Acho. Queria me comer. Só.

Minha mãe nunca foi com a cara do Bereco. Acho que fiquei com ele tanto tempo pra contrariar ela.

A gente tinha que mudar as relações, sabia? Quero dizer, essa coisa de ciúme é uma excrescência. Só que é difícil. Eu também sou ciumenta. Muito. Claro que não dou bandeira.

O Ivan é que tá certo. O cara diz que a liberdade é muito importante na relação de um casal. Só que ele vai além. Pra ele, sociedade perfeita não existe. 

Mas ele admira o padrão dos gregos antigos. Diz-que não havia a idéia de pecado. E ninguém se ofendia com a liberdade sexual do outro. Ninguém ficava fazendo mexericos.

Acho, racionalmente, que ele tá mais ou menos certo. Nossos valores seguem a linha judaico-cristã. Creio até que pra facilitar a reprodução da espécie, o cuidado com a prole, tá certo. Mais ou menos. Ai, eu com meu mais ou menos de novo. 

Eu tenho que ter mais valores absolutos. Não, não, isso é um perigo. Já tenho demais. Preciso é de relatividades valorosas.
Quando vovó faleceu, eu quis ir com ela. Mas não tive coragem. Falei pra todo mundo que ia me matar. Tudo onda. Minha avó foi sozinha.

Tá ouvindo minha mãe correndo? Tá indo acudir meu padrinho. Meu padrinho tá puro osso. E bem velho. Nem sei que idade tem. 

Às vezes, ele grita tanto. Já comemos um pedaço de seu braço direito e de sua perna esquerda. A que você comeu com gana. Lembra?

Mãe disso que ele tem de morrer devagar. Abusou de muitas crianças da família.  Até do Bereco quando ele tinha sete anos. 

Pra mim, a gota d'água foi ele ter abusado de você, Kyu. Pode deixar, segredo nosso. Não conto pra ninguém. Nunca esqueço quando ele se aproveitou de mim. Tenho trauma até hoje.

Ofereceram pra mãe uma função na Prefeitura, mas ela não quis porque iam tirar outra pessoa conhecida dela. Uma atriz veterana da cidade, que fez muito sucesso no passado em peças contra a ditadura. Tava sempre aprontando ao lado de minha mãe. Devem ter sido foda.

Mãe conta que essa colega atriz, apaixonada por um ator, casado, e vendo que era impossível eles ficarem juntos, depois que ele cansou de transar com ela, entrou numas de suicídio, buscando overdose de drogas e bebidas fortes. 

Depois de uns trinta anos, parece que tá saindo dessa, porém, sua constante melancolia e dependência de conhaque, menos que antes, porém muito ainda, atrapalha sua determinação artística...

Agora que me lembrei. Onde está minha chapinha? Será que tá com a Valdice? Depois, eu vejo.


Meu pai tinha transtorno bipolar. E eu não agüentava. Quando ele não tomava os remédios, chegava até a ser violento com minha mãe. Mas ela não deixava barato. 


Pai era baixinho que só. Puxei a ele. Que cacete! Tenho que aceitar isso. Sou baixinha, admito, mas bonitinha. Não, não, bonitinha é bonita tolerada. 

Sou bonita, isto sim, e tenho curvas que deixam os rapazes doidos. Tou sempre de salto e às vezes testo meu rebolado, com respeito, no entanto sem timidez excessiva.

Quando eu tava vindo pra cá, sabe o que eu vi, Kyu? Uns meninos fumando crack. Cheguei até a correr quando vi um deles se aproximar de mim. O número tá aumentando. As meninas esqueléticas e quase nuas, chegam a se prostituir pelas pedras.... Bicha, sabe quem eu vi? 

...A gente tem que mudar daqui. Mas minha mãe tem medo. A gente mora aqui pagando um aluguel de amigo, ela diz. Só que ela se esquece que nós viemos pra cá sob a promessa de financiamento.


O locador tava tava até perdendo os cabelos com um cara que não pagava o aluguel. A gente não, a gente paga em dia.

Quando a gente veio pra aqui, a gente começou a reformar bastante coisa. Trocamos fios, colocamos tomadas, ajeitamos o sótão, construímos até mais dois cômodos.

O dinheiro começou a ser mais seguro pro locador. Aí, ele desistiu de nos financiar o imóvel.

Em resumo, mãe tem medo de alugar outra casa e ser despejado.
...Bicha, acho despejo desumano. Legal, mas desumano. Não legal de bacana. Legal de estar na Lei. Tem muita coisa legal que não é moral. 

Veja, meu conceito de moral é meu, não bate com o dos rábulas. Rábulas só não, todos os servidores dos três poderes seguem definições absolutas e iguaizinhas. É por elas que despejam, que cobram, que mandam muitos pra rua da amargura...

Que papo mais sacal. Às vezes, esqueço e deixou meu QI interferir. QI de merda. Fosse mais burra, me daria melhor. Não sei como você me agüenta. 

Às vezes, me dá uma vontade de morrer de excesso de lucidez. Trancar o banheiro, vedar as frestas. Como quando eu....você sabe..

Kyu, tu tá ouvindo meu padrinho gritar? Mais essa agora. Será outro ataque? Vou lá ver.

Ele gritou mesmo foi quando a gente acorrentou ele. Ainda bem que esta casa é isolada.

domingo, 9 de setembro de 2012

SINFONIA EM MAT

Uma cidade de brinquedo que não é brinquedo.
Na TV da padaria, um avião da TAMAT desvia milagrosamente do tubo de imagens.
- Dois pães, por favor!
Com seu instrumento recolhido, o Mendigo de Pedra Coisinho saiu do banheiro, quente que nem um siri na panela fervente.
Não puxara a braguilha.
Estava cheio de sono, a descarga não funcionara e deixara o vaso transbordando semínimas marrons.
- Quatro roscas, depressa!
Não foi ele que disse isso. Mas, leitor, eu juro que não tenho o nome desse personagem.
Mal olhou o Coisinho, chamou-o pra um canto, baixou sua pauta, ajoelhou-se e massageou-lhe a música, embasbacado com a falta de controle sobre a tremenda vontade de chupar uma Sinfonia. Quem?
A padaria vai pelos ares. O avião da MATAM atravessa a tela da TV.
Uma bomba de chocolate cai do balcão de brinquedo.
-Ah, João, vou falar pra tua mãe!
Ah, já sei o nome de quem disse isso. Como é?

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O TORTURADOR

Quando foram tirados dos crânios que estavam naquele monte de ossos, estavam cheirosos os cabelos, aptos a serem usados para rechear travesseiros.
Quando foram tirados, o torturador nunca iria imaginar que dentre eles estavam outros cabelos. 
Nunca imaginaria que entre eles estavam fios de cabelo de um menino nórdico. 
Aquele seu filho nórdico puro desapareceu entre judeus num campo perto dali, na fuzilaria do inverno de 39, e seus cabelos enchiam aquele travesseiro que usava pensando que era de judeus judiados somente. 
A pele do filho estava também esticada em sua alcova: pele ariana filtrando a luz do abajur na cabeceira da cama.
Quando ele dormia, tinha um modo inconscientemente carinhoso de ligar o abajur e se agarrar ao travesseiro.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

QUANDO CANSAVA

Quando cansava, recolhia o asfalto. Guardava-o nos bolsos, bem dobradinho.

Seu Pai - Divino, há muito divorciado da Deusa-Mãe.

Dera a ele aquele planeta cheio de rodovias pra que ele se divertisse.

Fornecera a ele também um monte de famílias humanas.

Era para que de vez em quando ele atropelasse algumas, dando efeito “blush” ao rosto do asfalto.

MÚLTIPLOS DE VINTE E QUATRO

Sua mão direita cheia de cimento branco. 
Saltava daquele monturo, esperando ajuda.
Sua mão esquerda, quando a usava, nunca tão usada fora como a sua mão direita.
Enquanto não a tiravam do monturo, ele, o Homem, apareceu.

Segurou aquela mão da vitimada, primeiro em espírito solidário, depois, com amor desgastado.
Quando, vinte e quatro horas depois, ela foi resgatada, marcaram encontro.
Combinaram se conhecer no sentido bíblico para dali a vinte e quatro horas.
Bem, quarenta e oito horas mais tarde, casaram.
Cento e quarenta e quatro horas depois, morreram num transatlântico por excesso de posições sexuais num campeonato de Kama Sutrolímpica.
A polícia encontrou cento e noventa e dois exemplares do Kama Sutra ao lado dos corpos que formavam um só bloco, atravessados um no outro: posição Vento em Popa.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A VINGANÇA

...Ela amava de uma maneira diversa. Fora levada a isso desde a primeira linha do conto que começava assim:
...Ele amava também de uma maneira diferente. Como ela e ele poderiam encontrar outra maneira que não fosse essa, diferente? Chamavam-nos desde a mais tenra infância de bizarros. Se confortavam naquela canção da Pitty que dizia...como é mesmo: seja você mesmo que seja bizarro. Tirar a máscara do rosto. Dar vazão à ousadia da corda.

...O criador do conto, um egocêntrico, determinou isso. Eles tinham de cumprir a diferença.
...Em cima da corda esticada entre seu prédio e o prédio dele, ela e ele fariam a travessia quantas vezes fossem necessárias. Pois se amavam, e assim era determinado desde a primeira linha pelo maníaco de escrita torta.
...Ela pensara em desistir no início. Qual ele. Mas lhes disseram que seus caminhos bizarros só permitiam a coragem. Desafiado por ela, ele deslizou na corda bamba em cima de uma canção do Nirvana.
...Enfim, através da sábia escolha do toque de batera, ele conseguiu dela um sorrisinho malicioso como um vestido curtinho....que ela não usava, mas, ele tinha imaginação muito puritana, que não permitia despi-la, porém concedia que a visse de saia curtinha.
...Todos lá embaixo olhavam para aquele amor azul como um infinito de mar, sinal de que Deus existia entre dois relevos, entre dois argumentos paralelos, entre duas rombudas dúvidas, entre dois significantes tatuados: numa banda o Alfa, noutra abundando o Ômega.

...Quando ambos estavam na corda bamba indo um em direção ao outro, tudo o mais não importava. Era tudo tão desesperado e romântico, que nem Shakespeare nem tampouco todos os escritores e escritoras eróticos abarcariam.
...Eram delirantes. Cheiravam o pó das alturas, agora. Cansados do acordar seis horas, almoçar meia hora, estressar, voltar. O Vampiro proclamara um novo país, imerso nas sombras da insegurança, reformando o modo de viver. Não se trabalhava mais com alegria.
...Ambos os amantes chutaram tudo para o alto. E tinham intenção de morrer na corda bamba entre os dois, quando notaram que não tinham liberdade. O autor não lhes permitiu a liberdade. Mesmo se finassem por razões sentimentais, não seria devido a eles mesmos. O tirano autor era também uma espécie de vampiro, pois, atingido pelo Drácula da Alvorada, com suas reformas de morte, buscou se vingar colocando seus personagens à beira da morte.
...Todavia, ele também seguia as linhas de um outro autor, e este de um outro, até o infinito, onde se pensava existir uma inversão explosiva inicial, em que uma Criatura Autora Mãe seria a criadora do Primeiro Autor Criador.
...Então, os amantes realizaram a sua vingança, entrando em combustão, através de faíscas de amor, queimando, assim, o livro que recheava sua história.

DOIS LADOS DE UMA MOEDA POLÍTICA

Nem o vereador nem o eleitor se conheciam, a não ser por uma cesta básica contrabalançando o efeito negativo na economia das palavras do presidente.
O eleitor chegara ao conto dois minutos antes e agora apenas mastiga vez em quando pedaços do discurso do vereador:
“Estamos enfrentando meses difíceis. Houve seqüestro de dinheiro. Temos muitos precatórios herdados da administração anterior.”
Tanto o vereador quanto o eleitor gostavam daquela modelo que foi convidada há dois meses pelo ex-frentista que ganhou na loteria.
Quando ela casou há um mês com o ex-frentista, tanto o vereador quanto o eleitor chamaram o marido para auxiliar na Câmara.
Sem se conhecerem, a não ser em um discurso paralelo nas urnas, passaram a ter uma doença venérea comum.

SÓ A PLACA-MÃE


Naquela escola, próxima à Praça Taquaritinga, abriram o notebook.

Ergueu o braço direito, defendendo o rosto. Baixou o braço esquerdo, cobrindo a pseudo-virilha.

Só não armava defesas para os golpes que vinham invisíveis e transparentes e que nem sentia, não sabendo que existiam.

Quebraram-lhe os dedos, ossos, envenenaram-lhe os excrementos, tudo que em si era pixel.

Se estivesse sem luz, faria um escarcéu dos diabos. Ergueu o braço direito, ajeitando os dedos.

Baixou o braço esquerdo sinalizando aos ícones-irmãos.

Sorte deles que conhecia a placa-mãe há um bom tempo. 

Só ela tinha poder sobre a tela.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

DESVIEI UM GESTO

Estava ali dentro da caixa de papelão, esperando o frio passar.

Há décadas não encontrava uma caixa como aquela parecendo bule cheio de chá alegre.

Me deram um bolinho barato de chuva familiar.

Estava ali e trouxeram pra mim o gesto humano.

Eu traçava diagramas com as pulgas, desenhava gregas pilastras onde pousar poemas cansados dos morteiros.

Estava ali. No subterrâneo do bar. Ratos passeavam fora do papelão.

Jogaram um prato em minha cabeça. Quebrou um neurônio de sonho.

Desviei um gesto para comer amanhã. Angústia.

O real chegaria logo, tive fé.

EPÍLOGO DE JAMES BOND



Num beco escuro, próximo a uma academia de Caratê, ali no Jardim das Indústrias, Lucas tem o seu epílogo. 

Enquanto estrebucha na calçada, pensa.

“Caralho! Tou morrendo! O furo é grande, parece uma buceta de puta véia! Essa buceta dói pra caralho!”

Ele relembra seus últimos momentos. As cenas como que passam, deslizam, ante seus olhos. Plano americano. Travelling, etc.

Acessamos em sua mente os capítulos; damos zoom, em flashback.

Rosa, que já foi gostosa fruta pra bom suco, se acabou logo na lida.

No começo de sua adolescência, foi muito elogiada por sua beleza. Chegou a ganhar um concurso de Rainha Dread. Seus cabelos vermelhos foram notados por Mayara, dona de um estúdio especializado na feitura de dreads.

Foi numa praia. Ela bebia um copo de refrigerante, debaixo de um guarda-sol. Mayara se aproximou e disse a que veio. Rosa ficou deslumbrada. Aceitou fazer os dreads. No dia seguinte, iria ao estúdio, localizado perto dali.

Rosa estava na Praia do Perequê, no Guarujá, para onde ela fugira de seus pais com um vendedor de bugigangas colombianas, o Bráulio.

Bráulio vendia pacas, mas, o dinheiro que ganhava era todo gasto em cocaína e mesclado.

Na verdade, ele também fugia de seus pais. Sua mãe apanhava constantemente e ele não aguentava aquilo. Tentava interferir mas a mãe defendia o velho. O único remédio era sair dali pra um lugar bem longe.

Porém, quando Rosa foi chamada pelo estúdio, ele desapareceu. Pode ter voltado pra casa, ou sido assassinado por dívidas. Rosa nem quis saber. Seus olhos brilhavam com a possibilidade de ser modelo famosa.

Ganhou um book com as fotos. Contudo, não soube o que fazer. Talvez não quisesse fazer nada. Tava numa fase aguda de dependência de cocaína.

Ficou muito só. Ainda procurou Bráulio, mas, nem sinal dele. Para alimentar seu vício, entrou fundo na prostituição. Chegou a conhecer uma moça, a Lila, que se afeiçoou a ela, até que descobriu ser Rosa uma prostituta. Lila ficou possessa. Odiava prostituta. Era uma lésbica direita.

O tempo foi passando e Rosa conheceu Giba, vendedor de pipocas e capoeirista dos bons. Giba ajudou-a a se livrar das drogas mais pesadas. Tolerava apenas a maconha, da qual era um usuário sem fanatismo. A maconha não provocava nele um efeito similar ao que causava em outros usuários. Pensara até em largar de vez, mas, quando Rosa aparecera, era um pretexto para usufruir de sua companhia e conquistá-la.

Rosa e Giba se juntaram. Ficaram cinco anos juntos. Essa relação teve um fruto, a quem deram o nome de Francisco em homenagem ao avô de Rosa.

Rosa, porém, degringolou. Recaiu. Em pouco tempo, virou um trapo humano. Giba, desgostoso, depois de uma briga, saiu pra rua. Era um dia de chuva intensa. Muitos trovões e relâmpagos. Não viu a morte chegar. Um fio de alta tensão soltou e reduziu Giba a carvão.

Rosa, transtornada, afundou mais na lama em que estava. Teve a desfaçatez de vender o filho. Muitas outras coisas aconteceram até cair nas mãos do mafioso Granola.

Voltamos ao presente. Vemos ela aparecer no cemitério, desabafando sua humanidade sempre à flor da pele e confessando a Lucas, que está sempre coçando a nuca e fungando.

Lucas é um daqueles que precisam nascer de novo para ser digno do amor que os tios lhe dedicaram. 

Fora criado por eles após a morte dos pais num acidente, atropelados por um filho bêbado de um primo em nono grau do deputado Bemnumfaia.

-Ela só tinha nove anos, Luquinha.

-E eu com isso. O homem mandou, tá feito o serviço. Você já devia ter se conformado com o jeito dele resolver as coisas. Ele é assim. O pai da menina pisou com ele, a filha pagou.

-Pois é. A gente tá com o rabo preso até a outra vida.

-Principalmente você, que lhe arranja as menininhas.

Rosa cala. Quando sai dali, vai direto pra boca de fumo próxima, comprar maconha e cocaína. Ela não compra só pra si. Compra pra umas amigas que não têm coragem de ir até a boca. Uma delas, a Adelaide, é dançarina na Companhia Municipal, de primeira, respeitada e adulada. A outra é casada com o dono da principal concessionária de automóveis da cidade.

Depois, Rosa vai pra casa e dorme umas duas horas. Sonha com seu filho. Ultimamente, Rosa pensa muito nele. Acorda rapidamente quando o celular desperta. Hora de ir pro Inferninho’s Bar. Precisa saber de Granola se ele fez o que ela pediu.

Lá, Rosa, logo que adentra, dá de cara com o chefão dos caminhos perigosos. Vai ansiosa até ele.

-Então, nolinha, tu já descobriu pra mim.

-O quê?

-Não brinca comigo. Fala. Tu descobriu?

-O caso da tua criança?

-Vai me dizer que tu não conseguiu nada?

-E se eu conseguir o que tu precisa?

-Quanta coisa eu já te fiz e nunca pedi nada? Eu só pedi, porque eu sei que é fácil, não custa nada pra ti.

-Mesmo assim, eu quero que tu me pague.

-Como?

-Preciso que tu me pegue um dinheiro, logo, logo.

-Pode contar comigo, claro. E a minha criança?

-Tu acha que ele vai te aceitar assim..Cê sabe, né? Cê ta me entendendo?

-Sei, sei, eu sei que sou uma puta. Sempre fui. Por isso, tive de dar ele pra outra pessoa.

-Você saberia reconhecê-lo, se o visse?

-Uma mãe nunca esquece a cria. E ele também tem uma marca. Uma das suas unhas é preta.

-Tá bom, tá bom. Depois a gente fala nisso.

Um bêbado em revolta, o Murilo Cachaça, vem de um dos quartos.

-O grande Granola multiplica os peixes e os pães, transforma a água em vinho bom, mas, só uma coisa ele não faz.  Ele não consegue, coitado. Ressurreição dos mortos. É que são muitos e ele não é Jesus. Mas ele compensa isso, matando os vivos. Quem quer vender sua alma ao grande Granola? Ele já tem a minha. E pisa nela como um tapete de banheiro. Quanta honra me dão os seus pés!!

Na escuridão, um gesto agudo se prepara. Um gesto definitivo para o acusador, jovem João Batista.

Granola não acredita no que vê e sorri. Um riso de triunfo e de sadismo.

Alguém dá um tiro pro ar. Todos os presentes se agitam. Começam a correr.

Alguém se aproxima de Alguém e o torna Ninguém com sua faca comprida e afiada.

Granola pega Rosa pelo braço. Rosa deixa-se levar. Não entende nada. O mafioso revela.

- Eis o seu filho! Filho, eis a sua mãe!

- O Murilo é meu filho?

- Tou dizendo.

- E você sabia disso?

- Aqui eu sei de tudo. Nada é sem eu deixar que seja.

Granola gargalha. O sangue jorra copiosamente. Rosa vai interiorizando sua veia dramática. Do silêncio de quem toma um choque passa ao choro, Pietá do inferninho.

- Nããããooooo! Meu filho, nãããããoooo!

Perto, o assassino – Lucas - faz um sinal de serviço feito para Granola. A relação entre eles era assim. Lucas aprendera a ler nos olhos de Granola.

Ao entardecer do outro dia, vemos Rosa, solitária, no cemitério, frente à gaveta do filho. Em gesto lento, sua mão se aproxima de uma colher de pedreiro, a que foi usada para vedar o último lar de seu rebento. Pega e a põe na bolsa.
Lucas acompanha de longe e fica sem entender o gesto.

- Cada louco com sua mania...

As imagens vão se apagando na mente de Lucas. Zoom no tempo presente, que se estabelece, em plenitude e agudeza.

“Eita, colher de pedreiro afiada. Aquela puta deve ter passado num esmeril...Ai.  Ela me esfaqueou bem no.....Por quê?... Será que ela vai fazer igual à minha tia? ..Meu pinto colocado numa caixinha feito um bibelô? Ia ser uma vergonha. Só falta essa..... O fio de meu pensamento se esgota. Meu labirinto já foi explorado. Cheguei. Não sinto nada de minha voz. Uma vergonha pra quem antes, como eu, era chamado de Zero Zero Lee.... Me sentia James Bond, o 007 do kiai, o bambambam secreto.... Eu tinha um kiai forte. Bem forte..Ai que dor, caralho!”

Um grupo estranho se aproxima do corpo de Lucas. Vai sendo cortado rapidamente por homens experientes em seu mister de tráfico de órgãos. Pegam seus rins, fígado, coração. E o último cheque que recebera de Granola. 

O que sobra é quase um buraco, quase uma gaveta talhada na carne. E uma falinha longínqua teimando num restinho de memória espalhado nos miolos lavando a calçada:

“James Bond, meu nome é James Bond..”

IMAGEM ACIMA - O Grito, Mazé Leite, óleo sobre tela, 2013





domingo, 26 de agosto de 2012

CRITICA TARDIA SOBRE TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS E ME ENTERREM COM MINHA AR-15


Vejo em “Tratado dos Anjos Afogados”, do poeta Marcelo Ariel, uma continuidade do livro anterior “Me Enterrem com Minha AR-15. Neles, há a preocupação com temas de natureza filosófica, porém, sem a intenção de eleger idéias estruturadas, de conclusões racionalistas. Suas indagações estão permeadas de mistério. Que bom que assim seja, pois, do contrário não exalaria poesia da melhor cepa.  Neles, percebo também preocupações de natureza social, onde é impossível não enxergar “os anjos afogados”, que, a meu ver, além das crianças vitimadas pelo sistema, somos todos nós, vítimas do desenvolvimento econômico sem limites. 
Gostaria de ressaltar, dentre os poemas de Ariel, o caleidoscópico “Cadenza dos Comandos”, que está presente em seus dois livros. Vejo na carta transcrita ali a ressonância do pensamento do poeta, expresso em quase todos os seus poemas, desde que se desconte as defesas da via das armas como resposta à opressão dos poderosos. Corrija-se: as armas de Ariel são de cunho estético e penetra angustiadamente fundo, buscando enfrentar a recusa, a nadificação dos excluídos pelo trator do capital, tipificado na capa por duas chaminés expelindo fumaça, símbolo do crime ambiental realizado em Cubatão, desde meados da década de 50, com o início da industrialização.
Reitere-se que Marcelo, em sua obra, preocupa-se sobremaneira com as crianças, vítimas indefesas do poder anencéfalo. Talvez se possa ver nisso um anseio de pureza, que sabe impossível, pois, como diz em determinado poema “deus é um recém-nascido com duas facas no lugar dos braços”.  E como disse em “Beckett-Celular”, criticando irônica e cinicamente a febre tecnológica dos novos produtos:“Vida Guerra atirou o recém-nascido do quarto andar e antes que aquele boneco do Farnese chegasse ao chão ele explodiu e de dentro do recém-nascido saíram vários celulares com MP3 e câmera digital...” Por Ariel ser um grande poeta, quase enxergamos nessas palavras uma certa profecia sádica, porém, se há sadismo ele está na cabeça inexistente do opressor político/econômico, cadenciando seu jogo cômico e bruto sobre nós.

DESABAFO I (INSPIRADO EM FRASES DE NELSON RODRIGUES)


Estou besta com o que me contaram, louro de merda! Besta! Bestapacralho! Tou com a minha cara no chão! A cara, a careta, tarada por saco rugoso! Ela vive me pondo chifre de enfeite! Por isso é que eu digo. Mulher como a minha......Deixa eu coçar aqui. Essa frieira é jogo duro. Não me abandona.
Volta a atenção pra fora. Um ator vizinho, no alto de um prédio, ensaia frases de Nelson Rodrigues.
(ATOR: Deus só freqüenta igreja vazia.)
Esse ator ai de cima, José, é um otário que sonha com o Grande Irmão. Vive repetindo Nelson. O grande Nelson.
Meu avô conheceu o tal. Os dois já traçaram juntos por sacanagem a mesma inflável mulher. Sabia, sabia? Pois fique sabendo. Os dois andaram também pegando aquela uma que se findou agora. Aquela que mudou de sexo. Era homem ficou mulher cheia de silicone industrial, não é? Droga levou ela, não foi? Não, não, pesada não, coca não, maconha não. Foi barbitúrico. Um monte ela pôs pra dentro. É certo isso como dois e três são vinte e três.
Sobre o fato da mulher que tirei da zona e que me chifra estou pasmado, quase biruta de tal inesperado. Sempre achei ela de frio nariz honesto. Errado? Fazer o quê?
Fui à igreja do Padre daqui. O Belmiro. É um diferente. Sempre em escuro bem vestido. Coisa de marca. Quase Black Metal. E a igreja do Padre Belmiro está sempre cheia. Entende?
Se ele não fosse padre, eu dava-lhe um tiro na boca! Ela minha mulher que tirei da zona do porto, com cicatrizes que um açougueiro fez nela.
...Hum, quem me avisou? O merduncho do FDP. Eu encontrei ele quando tava fazendo xixi. Quase mijei no seu pé. Ele já me aprontou muito. Não é que o diacho virou diácono? Ele não era viado? Vivia fazendo xixi de mentira só pra ver o viril dos alheios. E pensar que namorou minha irmã, um pouco antes de virar! A gente quando pequeno apostava esguicho de esperma à distância. Tinha troca-troca até, mas tudo na moral de homem.
Mas voltando ao padre, eita bicho  falso feito papel emitido por banco de fachada.
Um sem-vergonha em que mais não confio. Perfil de criminoso sexual. É o que penso. Não admito....
(ATOR:Não admito censura nem de Jesus Cristo.)
Não admito. Esse porra desse ator está nos ouvindo? Acho que não, né? É que às vezes, coincide. O Nelson que era profeta, isto sim.
(ATOR:Pois toda mulher gosta de apanhar. Só as neuróticas reagem.)
Isso é batata, eu bato nessa amante vira-lata lambedora de bata que me bota chifre baita. Além do mais, a desejo doentiamente. Mas não sou infiel.
(ATOR:E amar é ser fiel a quem nos trai.)
Concorda? Mesmo que seja em pensamento e com um padre, desconformo. E o senhor?
(ATOR:Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro.)
.....Olha, eu agüento o peso das galhas! Sei que amor verdadeiro não é só sexo.
(ATOR:Sexo é para operário.)
 Certo? Concorda? O que dou pra ela comer só eu dou. Outro não. Principalmente, ele.
(ATOR:O homem começa a morrer na sua primeira experiência sexual.)
 Esse ator de vez em quando atrapalha. Dou-lhe ainda uma mijada no cu....Depois, ao final.
 (ATOR:Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante.)
Entendeu?... Minha mania são as dentadas molhadinhas de Guiomar. E isso de maneira normalíssima. Quando nos conhecemos, ela me lambia a calvície e uivava, com fúria de desejo. E nos mordíamos a torto e a direito, da cabeça ao rabo. Um dia posso pedir pra ela te morder. Quer?
(ATOR:Sem dentada, não há amor possível.)
Em nossa cama, a metafísica é odontológica.
( ATOR:A cama é um móvel metafísico.)
O que me dói mais é que ela morde outro como a mim. Dizem que a mãe dela, aquela cadela, era assim também. Mordia todos os amantes. Um era ginecologista. Quase foi veterinário. Dizem pra mim os mais velhos que o zebu vivia exibindo as mordidas...
(ATOR:Todo ginecologista devia ser casto. Antigamente, a mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera. O ginecologista devia andar de batina, sandálias e coroinha na cabeça. Como um São Francisco de Assis, com luva de borracha e um passarinho em cada ombro...)
Bem, quer dizer. Pensando melhor, minha mulher ia subir pelas paredes se recebesse comida de um veterinário. Não estou sendo coerente.  Mas, olha. Escuta.
(ATOR:Toda coerência é no mínimo suspeita.)
E eu não tenho certeza de nada. Contou pra mim um salta-pocinhas, mas eu não vi o ato.
(ATOR:O marido devia ser o último a saber.  Aliás, o marido não deve saber nunca. )
A gente só é isso quando sabe, quando a gente vê, não é? Mas eu, por enquanto, não vi. Eu duvido do ato em si.
(ATOR:A dúvida é a autora das insônias mais cruéis.)
 Preferia que não me contassem. Não tenho amigo. Um amigo não inferniza a gente assim. (ATOR:Amigo é um momento de eternidade. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Quem não é canalha na véspera, é no dia seguinte. Hoje, é muito difícil não ser canalha.)
Certa ocasião, ouvi o Norato Ratono, esse ator filho de quenga puta que vou pegar já, já, esse zebu, falar, e concordei. Disse que desistia da vida eterna. Por causa da pureza fedorenta dos mais santos, geralmente versados na politicalha da cidade. Ratono Norato diz-que preferia ser um canalha abjeto, capaz das bacanais mais horrendas..
(ATOR:A pressão da vida atual trabalha para a nossa canalhice pessoal e coletiva.)
Não é, hein? Fala. Olha, até menino é canalha, atualmente. Um dia, abri a porta do quarto e flagrei um cachorro entalado nela. E um menino olhando com sarro. Mas ela não pode ter nenê. É uma cadela castrada, pastor. Uma mulher, só que nasceu de quatro patas.
Agora, ela viciou na ração que o Padre Belmiro dá. Pode isso. Por isso quero da sua igreja oração poderosa anticatólica anti-Belmiro. Tou com nojo....Ai, Zezinho, acho que vou vomitar...
(ATOR:Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina, quando tem um filho, melhora.)
 Foi pouquinho. Depois, eu limpo. Só uma pastinha de nada, né? Não tou doente não. Devo ter comido alguma merda por aí.
(ATOR:Certas épocas são doentes mentais, como a nossa.)
Talvez eu devesse procurar a morte.
(ATOR:Deus prefere os suicidas.)
Mas eu não consigo. Ta escutando meu coração, Zezinho? Este desgraçado aqui bate por uma canina infiel....
(ATOR:Todo desejo é vil aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhh!)
Vai pro teatro, seu merda! Que baque é esse? Deixa ver da janela o que ess’ator besta tá fazendo!
Lá embaixo, como um desenho animado, um lago vermelho com olhos e bolhas na superfície.
Ih, ele caiu. Quem mandou. Ler texto no ponto mais alto do prédio.
O papagaio, chamado por ele carinhosamente de Louro José ou Zezinho, grita com seu tom contundente e claro.
-        Corno! Corno! Corno!
Altamirando dá-lhe um chute, como sempre.
Beberica um vinho. Pega o livro que estava lendo, com frases de Nelson Rodrigues:
“O amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira. É abjeto que um homem deseje a mãe de seus próprios filhos”,
“Qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea”,
“A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual”,
“Com sorte, você atravessa o mundo, sem sorte, você não atravessa a rua”,         
“Qualquer amor há  de sofrer uma perseguição assassina”,
“Somos impotentes do sentimento e não perdoamos o amor alheio. Por isso, não deixe ninguém saber que você ama”.
Ele acaba dormindo, engatando de primeira num sonho, onde sonha que acorda levando um chute do papagaio, que no sonho fala mais de mil palavras. A primeira é:
- Estou besta! Estou besta!

 

 

DE REPENTE UM ZUNIDO



De repente, a claridade, um zunido.
Lera em algum lugar a respeito de barulhos estranhos vindos de nuvens escuras.
Certa vez fora abordado por Android que lhe indagou sobre buracos da internet das quais saíam personagens metálicos.
Outra vez, se queixara por que um ponteiro de mouse se lhe fincara no peito.
Mas ele não tinha medo do futuro, não ficava arrepiado com o desconhecido, até mesmo porque não tinha pelos a serem eriçados.
-Porém, como evitar o bit de nervos?
-Como fugir às indagações filosóficas?
-Somos apenas um ajuntamento de vácuos?
Por que existia?
-Haveria luz do outro lado?
Estava só num universo quântico?
Deus era um dedo a se aproximar do Power?
-Quanto mais aceso o monitor mais vida?
Esquecera, por excesso de tergiversação, de atentar para os lados, onde alguém tentava desarquivá-lo; um Cavalo de Tróia, passando a galope, estraçalhava suas pastas mais importantes.
Puxou da camisa eletrônica antiga nova possibilidade de ontogênese, lançou mão de fosforescências com que atingisse a Mônada fundamental de seu ser.
E eis que, inopinadamente, olha para baixo, coisa que nunca antes conseguira.
A energia oscila e, então, na oscilação, dúvida binária:
-Serei apenas um personagem da tela em descanso?
Veio a vontade de acenar para olhos à frente que lhe pareciam cada vez mais reais.
-Serão olhos de um deus ou de uma deusa?
Ajoelha e, contrito, observa o antivírus como um Filho Divino a limpar-lhe o espaço dos Cavalos de Tróia do Apocalipse.
Iluminado e consciente de ser objeto e não sujeito, pensou em Diógenes morando no barril e manifestou o desejo aos olhos frontais de morar para sempre na lixeira.
Para ele, que fora um mestre em criar programas complexos, aquela clínica psiquiátrica era um computador.