quinta-feira, 28 de março de 2013

ONDE ME PERDERA

Tenho setenta e quatro anos. Rotina: acordo, ando, sento no bar em frente, como, levanto, ando, durmo. Tudo isso se repete, num círculo vicioso.
Hoje estava andando na feira pra tomar o meu habitual caldo de cana quando encontrei um amigo que não via há um tempão. O Rodrigues, um companheirão de décadas. Quem diria que o veria casado. Casado, vejam. Fizera o juramento de nunca mais confiar em mulher nenhuma, depois que a sua abandonou o casamento para ser seguidora do Pastor Josafá, da Igreja Dias Melhores, aliás, criada pelo dito pastor. Fizera o juramento, mas desjurou.
-Como que vai, Pentalha (apelido de Rodrigues)? 
-Vou indo e tu? 
-Indo também mas com uma dor aqui outra ali, sustentando. Minha mãe é que está mal.
-Sua mãe? Mas ela já deve estar com noventa e quatro anos, não é?
-Isso, isso, se vivesse, e por ela viveria mais uns dez. Vivia falando: se Deus me desse mais uns dez eu ainda ia ajudar muita gente.
-Ela ajudou?
-Não. Ao contrário. Só falou porque viu a morte na soleira, virou santa.
-A coisa é assim mesmo. Ninguém quer ficar perto da foice.
-Me espanta ainda isso. Mas é. 
Quando encontrei meu colega na feira, estava olhando o semblante das pessoas e fazendo uma reflexão a respeito da vida, mais de suas contradições estéticas do que das éticas.
Estava pensando na grande injustiça da natureza. 
A beleza interior só nos interessa, sinceramente, no leito de morte. Quando queremos, nesta hora mais vida, esquecemos toda mágoa, todo apego a pessoas e esmagamos nosso orgulho. Enfim, amamos a todos incondicionalmente. Temos vontade de beijar até cachorro morto, sem ligar muito pras taras das bactérias.
Por que esse modo de ver as coisas demora tanto e justamente aparece quando estamos indo deste terreno para aquele mais desconhecido?
Quando nos casamos por ideal, vivemos com aquela pessoa amada subjugando todas as forças contrárias e seguimos ainda, depois de muitos anos, acarinhando a alma um do outro. 
Porém, se a beleza exterior nos seduz mais que a interior, a coisa degringola.
Quando minha mulher ficou entrevada, por exemplo, em estado de coma, um tantinho antes de falecer, não consegui controlar meus olhos que se dirigiam, disfarçadamente, para pernas e protuberâncias redondas de coisas e gentes. 
Não conseguia manter minha visão nas retas, pois os olhos pesavam mais pra baixo, na intenção das curvas.
Desejei até ressuscitar meu ânimo, perdido há muito, e continuar um conto, onde criara um personagem, que, pra não perder o amor, quis cegar-se.
Bem, parei o conto no momento em que o personagem tomaria a resolução que mudaria sua vida. Se cegaria mesmo a custa de viver na dependência dos outros? Sim, seu amor estaria salvo. Encheria o copo de seu ser de novos valores interiores, dirigidos pra sua amada, cujas formas a sua mente moldaria. 
Todavia, a sua memória já fora contaminada pelos padrões de beleza da sociedade? O bicho pegou aí.
Contudo, se eu mudasse a trajetória desse personagem e o matasse antes que se cegasse?
Bem, esse conto ainda está ali naquela gaveta trancada a sete chaves...Ou seria oito, nove, dez? Não importa.
Naquele instante em que me despedi de meu amigo na feira, puxei o espelhinho do bolso e, ao me mirar, o que ocorreu? o que ocorreu? eu, eu, eu tinha desaparecido.
Tive de chegar em casa e telefonar para os jornais mais importantes da cidade. Depois, refiz o caminho. Onde me perdera? 

sábado, 23 de março de 2013

ZÉ POETA E O ROUBO DE PALAVRAS (inspirado em Privatização de Palavras materia da revista LINGUA PORTUGUESA)


Zé Poeta chegou no bar do Maciel, pediu um conhaque, e sentou, despejando na mesa um monte de livros que comprara por uma mixaria no sebo que tem ali do outro lado da avenida, do lado oposto aos Supermercados Peralta.

Naquele dia, acordara com uma vontade desesperada. Queria falar tudo que lhe desse na telha. Não aguentaria mais as humilhações daquele grupelho de escritores bebedores de vinho e cheiradores de pó do bar da outra esquina.

- Vendidos. Pilantras comerciantes de palavras!

O bar do Prato-Sujo….Como ele ganhou esse apelido nem é bom falar pra não perder o apetite. O fato é que seu bar estava cheio. Cheio não, cheíssimo.

 - Veja, seu Prato-Sujo, eles chegaram ao desplante de tentar vender a palavra poesia. Estavam lá com aquela maleta invisível onde estava a palavra poesia. Estavam lá, juro. Dei por falta da palavra poesia e fui atrás daqueles biltres.

Quando fecharam os olhos por efeito de gargalhadas impossíveis de conter, voei até eles e roubei-lhes a maleta. Foi por pouco.

Dirigiu-se aos frequentadores:

 - Já ouviram falar em privatização de palavras? Um absurdo. Um absurdo. Um ab, vocês sabem, surdo. Aí vem o cara, posudo, sorridente e com a alma defeituosa dos que posam com damas absolutas de olhos precisos como a lei da gravidade. Vem o cara, de terninho novo, com terminologia jurídica dominante, e diz: para uma marca ser registrada a partir de uma palavra dicionarizada é preciso que não tenha conexão semântica com o produto e bla-bla-bla. Comigo não, figurão. Todo termo linguístico é necessário e de uso livre.

Vejam bem, o Comitê não sei o quê pegou três termos da língua pra seu uso. E sem autorização daquela sigla que não me lembro.

Lembram daquela empresa japonesa que registrou a palavra açai e depois saiu de banda quando entendeu o lance errado?

Pois é, também aquele ex-presidente que sancionou a Lei tal e coisa abriu as pernas e se acharam no direito de lhes roubarem a palavra prepúcio.

Roubei a maleta com a palavra poesia. Eles que venham me tirar.

Olhem pra cá, sonados. Olhem pra cá. Leiam meus lábios. A COFA busca patentear 1200 palavras. Em seu nome, registrou a palavra FUCK, em razão do Campeonato Mundial.

Sei que me tornei um criminoso procurado. Isso não altera minha consciência.

Estou treinando Gramática Marcial. E estou ficando bom. Aconselho aos amantes da língua a fazerem como eu. Pra começar, tentem roubar aquelas 1200 palavras. Tentem ao menos.

Se quiserem, antes, se prepararem em Gramática Marcial, conheço mestres de estilos insuperáveis. Posso lhes apresentar.

Não podemos ficar inermes. E, se nós, os viciados no pó da sintaxe, criarmos novas palavras, temos de nos aferrar às mesmas, senão vocês já sabem. Os aproveitadores estão por aí. São abusadores, estupradores de palavras. Ladrões e estupradores.

Dirigiu-se a Prato:

A palavra poesia está aqui, seu Prato-Sujo. Mas não é minha, é nossa. Dou cópia pra quem me demonstre sinceridade e amor às palavras.

Fora do bar, já lhe esperava a perua do Hospício pra pegar mais um fugido.



quinta-feira, 21 de março de 2013

BUSCAVA UM FILME

Buscava um filme. Tendo de sair da minha preguiça para escrever sobre as maninhas ética e moral, e me pus a pensar em algum filme que me ajudasse a escrever sobre essas duas irmãs siamesas.
Como me encontrasse limpo, vi-me na necessidade de poluir o corpo com alguma substância nociva.
Estava com uma calça cujos botões estavam quase saindo. Puxei com força, acabei "lipidionosamente" por quebrar dois. Pensei aos brados: "caralho!!! Pelo menos, ainda tinha o cinto.
Bem, fui até o supermercado da Ana, aqui perto, na esquina das nações com a sete, à procura de substâncias malditas - refrigerantes diets entre as tais. 

Comecei a percorrer as prateleiras com olhos preguiçosos e remelentos.
De súbito, um perfume doce me invade as narinas de bom tamanho. Fico por momentos inebriado e certo de ter na origem daquele cheiro a origem do elemento buscado.
Percorri o mercadinho todo e não achei a origem daquele odor. Será que meu cérebro já está me fazendo gracinhas, daquelas que levam a ver porcos na caixa registradora?
Desisti de procurar nas prateleiras e já ia saindo quando vejo uma coroa com um poodle de biscoito.

Quando desviei a atenção da namoradeira linda do balcão, observei que um caminhão de suco em pó parava em frente. Bem apropriado. Chegara minha tentadora substância cancerígena.
Costumo pegar o pó do suco e misturar com açúcar. Depois, uma lambida séria. Isso dá um barato que nem lhes conto. 

Aguardei que colocassem na prateleira e comprei trinta suquinhos de pó corante.
Seriam o combustível a despertar a inspiração adequada à geração de obras-primas, nem que fossem de terceiro grau de parentesco com obras bem mais merecedoras. Não precisaria café com adoçante. Que não me surtem mais efeito.
Saí do mercado, atravessei a rua e já ia rodando a chave no portão quando um braço me tocou. Era minha filha me indagando o que eu tinha no pacote.
Quando lhe disse que era suco, ela franziu o cenho. 
Seus olhos caíram nos sucos que eu tentava esconder dela. Ela sabia que os sucos já me fizeram ver 'story-lines' rastejando pelas paredes. 
E eu também, todavia....viciado é viciado. Me lembrou sobre o trabalho de ética e moral que eu prometi fazer pra ela.
Não adiantou que lhe falasse de um filme que buscava para ilustrar o trabalho. E era verdade. Inicialmente, eu buscara o filme. 

Desviei. Coisas de viciado em sucos com corantes pesados.
Minha filha, contrariada, saiu pra outra direção. Eu entrei.
Aproveitei pra diluir umas carreiras de suco em papel-toalha.
Quando a mulher chegou, eu já passara das "story". Já estava vendo argumentos nas arestas do telhado. Detalhe : não há telhado em casa.