sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A VINGANÇA

...Ela amava de uma maneira diversa. Fora levada a isso desde a primeira linha do conto que começava assim:
...Ele amava também de uma maneira diferente. Como ela e ele poderiam encontrar outra maneira que não fosse essa, diferente? Chamavam-nos desde a mais tenra infância de bizarros. Se confortavam naquela canção da Pitty que dizia...como é mesmo: seja você mesmo que seja bizarro. Tirar a máscara do rosto. Dar vazão à ousadia da corda.

...O criador do conto, um egocêntrico, determinou isso. Eles tinham de cumprir a diferença.
...Em cima da corda esticada entre seu prédio e o prédio dele, ela e ele fariam a travessia quantas vezes fossem necessárias. Pois se amavam, e assim era determinado desde a primeira linha pelo maníaco de escrita torta.
...Ela pensara em desistir no início. Qual ele. Mas lhes disseram que seus caminhos bizarros só permitiam a coragem. Desafiado por ela, ele deslizou na corda bamba em cima de uma canção do Nirvana.
...Enfim, através da sábia escolha do toque de batera, ele conseguiu dela um sorrisinho malicioso como um vestido curtinho....que ela não usava, mas, ele tinha imaginação muito puritana, que não permitia despi-la, porém concedia que a visse de saia curtinha.
...Todos lá embaixo olhavam para aquele amor azul como um infinito de mar, sinal de que Deus existia entre dois relevos, entre dois argumentos paralelos, entre duas rombudas dúvidas, entre dois significantes tatuados: numa banda o Alfa, noutra abundando o Ômega.

...Quando ambos estavam na corda bamba indo um em direção ao outro, tudo o mais não importava. Era tudo tão desesperado e romântico, que nem Shakespeare nem tampouco todos os escritores e escritoras eróticos abarcariam.
...Eram delirantes. Cheiravam o pó das alturas, agora. Cansados do acordar seis horas, almoçar meia hora, estressar, voltar. O Vampiro proclamara um novo país, imerso nas sombras da insegurança, reformando o modo de viver. Não se trabalhava mais com alegria.
...Ambos os amantes chutaram tudo para o alto. E tinham intenção de morrer na corda bamba entre os dois, quando notaram que não tinham liberdade. O autor não lhes permitiu a liberdade. Mesmo se finassem por razões sentimentais, não seria devido a eles mesmos. O tirano autor era também uma espécie de vampiro, pois, atingido pelo Drácula da Alvorada, com suas reformas de morte, buscou se vingar colocando seus personagens à beira da morte.
...Todavia, ele também seguia as linhas de um outro autor, e este de um outro, até o infinito, onde se pensava existir uma inversão explosiva inicial, em que uma Criatura Autora Mãe seria a criadora do Primeiro Autor Criador.
...Então, os amantes realizaram a sua vingança, entrando em combustão, através de faíscas de amor, queimando, assim, o livro que recheava sua história.

DOIS LADOS DE UMA MOEDA POLÍTICA

Nem o vereador nem o eleitor se conheciam, a não ser por uma cesta básica contrabalançando o efeito negativo na economia das palavras do presidente.
O eleitor chegara ao conto dois minutos antes e agora apenas mastiga vez em quando pedaços do discurso do vereador:
“Estamos enfrentando meses difíceis. Houve seqüestro de dinheiro. Temos muitos precatórios herdados da administração anterior.”
Tanto o vereador quanto o eleitor gostavam daquela modelo que foi convidada há dois meses pelo ex-frentista que ganhou na loteria.
Quando ela casou há um mês com o ex-frentista, tanto o vereador quanto o eleitor chamaram o marido para auxiliar na Câmara.
Sem se conhecerem, a não ser em um discurso paralelo nas urnas, passaram a ter uma doença venérea comum.

SÓ A PLACA-MÃE


Naquela escola, próxima à Praça Taquaritinga, abriram o notebook.

Ergueu o braço direito, defendendo o rosto. Baixou o braço esquerdo, cobrindo a pseudo-virilha.

Só não armava defesas para os golpes que vinham invisíveis e transparentes e que nem sentia, não sabendo que existiam.

Quebraram-lhe os dedos, ossos, envenenaram-lhe os excrementos, tudo que em si era pixel.

Se estivesse sem luz, faria um escarcéu dos diabos. Ergueu o braço direito, ajeitando os dedos.

Baixou o braço esquerdo sinalizando aos ícones-irmãos.

Sorte deles que conhecia a placa-mãe há um bom tempo. 

Só ela tinha poder sobre a tela.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

DESVIEI UM GESTO

Estava ali dentro da caixa de papelão, esperando o frio passar.

Há décadas não encontrava uma caixa como aquela parecendo bule cheio de chá alegre.

Me deram um bolinho barato de chuva familiar.

Estava ali e trouxeram pra mim o gesto humano.

Eu traçava diagramas com as pulgas, desenhava gregas pilastras onde pousar poemas cansados dos morteiros.

Estava ali. No subterrâneo do bar. Ratos passeavam fora do papelão.

Jogaram um prato em minha cabeça. Quebrou um neurônio de sonho.

Desviei um gesto para comer amanhã. Angústia.

O real chegaria logo, tive fé.

EPÍLOGO DE JAMES BOND



Num beco escuro, próximo a uma academia de Caratê, ali no Jardim das Indústrias, Lucas tem o seu epílogo. 

Enquanto estrebucha na calçada, pensa.

“Caralho! Tou morrendo! O furo é grande, parece uma buceta de puta véia! Essa buceta dói pra caralho!”

Ele relembra seus últimos momentos. As cenas como que passam, deslizam, ante seus olhos. Plano americano. Travelling, etc.

Acessamos em sua mente os capítulos; damos zoom, em flashback.

Rosa, que já foi gostosa fruta pra bom suco, se acabou logo na lida.

No começo de sua adolescência, foi muito elogiada por sua beleza. Chegou a ganhar um concurso de Rainha Dread. Seus cabelos vermelhos foram notados por Mayara, dona de um estúdio especializado na feitura de dreads.

Foi numa praia. Ela bebia um copo de refrigerante, debaixo de um guarda-sol. Mayara se aproximou e disse a que veio. Rosa ficou deslumbrada. Aceitou fazer os dreads. No dia seguinte, iria ao estúdio, localizado perto dali.

Rosa estava na Praia do Perequê, no Guarujá, para onde ela fugira de seus pais com um vendedor de bugigangas colombianas, o Bráulio.

Bráulio vendia pacas, mas, o dinheiro que ganhava era todo gasto em cocaína e mesclado.

Na verdade, ele também fugia de seus pais. Sua mãe apanhava constantemente e ele não aguentava aquilo. Tentava interferir mas a mãe defendia o velho. O único remédio era sair dali pra um lugar bem longe.

Porém, quando Rosa foi chamada pelo estúdio, ele desapareceu. Pode ter voltado pra casa, ou sido assassinado por dívidas. Rosa nem quis saber. Seus olhos brilhavam com a possibilidade de ser modelo famosa.

Ganhou um book com as fotos. Contudo, não soube o que fazer. Talvez não quisesse fazer nada. Tava numa fase aguda de dependência de cocaína.

Ficou muito só. Ainda procurou Bráulio, mas, nem sinal dele. Para alimentar seu vício, entrou fundo na prostituição. Chegou a conhecer uma moça, a Lila, que se afeiçoou a ela, até que descobriu ser Rosa uma prostituta. Lila ficou possessa. Odiava prostituta. Era uma lésbica direita.

O tempo foi passando e Rosa conheceu Giba, vendedor de pipocas e capoeirista dos bons. Giba ajudou-a a se livrar das drogas mais pesadas. Tolerava apenas a maconha, da qual era um usuário sem fanatismo. A maconha não provocava nele um efeito similar ao que causava em outros usuários. Pensara até em largar de vez, mas, quando Rosa aparecera, era um pretexto para usufruir de sua companhia e conquistá-la.

Rosa e Giba se juntaram. Ficaram cinco anos juntos. Essa relação teve um fruto, a quem deram o nome de Francisco em homenagem ao avô de Rosa.

Rosa, porém, degringolou. Recaiu. Em pouco tempo, virou um trapo humano. Giba, desgostoso, depois de uma briga, saiu pra rua. Era um dia de chuva intensa. Muitos trovões e relâmpagos. Não viu a morte chegar. Um fio de alta tensão soltou e reduziu Giba a carvão.

Rosa, transtornada, afundou mais na lama em que estava. Teve a desfaçatez de vender o filho. Muitas outras coisas aconteceram até cair nas mãos do mafioso Granola.

Voltamos ao presente. Vemos ela aparecer no cemitério, desabafando sua humanidade sempre à flor da pele e confessando a Lucas, que está sempre coçando a nuca e fungando.

Lucas é um daqueles que precisam nascer de novo para ser digno do amor que os tios lhe dedicaram. 

Fora criado por eles após a morte dos pais num acidente, atropelados por um filho bêbado de um primo em nono grau do deputado Bemnumfaia.

-Ela só tinha nove anos, Luquinha.

-E eu com isso. O homem mandou, tá feito o serviço. Você já devia ter se conformado com o jeito dele resolver as coisas. Ele é assim. O pai da menina pisou com ele, a filha pagou.

-Pois é. A gente tá com o rabo preso até a outra vida.

-Principalmente você, que lhe arranja as menininhas.

Rosa cala. Quando sai dali, vai direto pra boca de fumo próxima, comprar maconha e cocaína. Ela não compra só pra si. Compra pra umas amigas que não têm coragem de ir até a boca. Uma delas, a Adelaide, é dançarina na Companhia Municipal, de primeira, respeitada e adulada. A outra é casada com o dono da principal concessionária de automóveis da cidade.

Depois, Rosa vai pra casa e dorme umas duas horas. Sonha com seu filho. Ultimamente, Rosa pensa muito nele. Acorda rapidamente quando o celular desperta. Hora de ir pro Inferninho’s Bar. Precisa saber de Granola se ele fez o que ela pediu.

Lá, Rosa, logo que adentra, dá de cara com o chefão dos caminhos perigosos. Vai ansiosa até ele.

-Então, nolinha, tu já descobriu pra mim.

-O quê?

-Não brinca comigo. Fala. Tu descobriu?

-O caso da tua criança?

-Vai me dizer que tu não conseguiu nada?

-E se eu conseguir o que tu precisa?

-Quanta coisa eu já te fiz e nunca pedi nada? Eu só pedi, porque eu sei que é fácil, não custa nada pra ti.

-Mesmo assim, eu quero que tu me pague.

-Como?

-Preciso que tu me pegue um dinheiro, logo, logo.

-Pode contar comigo, claro. E a minha criança?

-Tu acha que ele vai te aceitar assim..Cê sabe, né? Cê ta me entendendo?

-Sei, sei, eu sei que sou uma puta. Sempre fui. Por isso, tive de dar ele pra outra pessoa.

-Você saberia reconhecê-lo, se o visse?

-Uma mãe nunca esquece a cria. E ele também tem uma marca. Uma das suas unhas é preta.

-Tá bom, tá bom. Depois a gente fala nisso.

Um bêbado em revolta, o Murilo Cachaça, vem de um dos quartos.

-O grande Granola multiplica os peixes e os pães, transforma a água em vinho bom, mas, só uma coisa ele não faz.  Ele não consegue, coitado. Ressurreição dos mortos. É que são muitos e ele não é Jesus. Mas ele compensa isso, matando os vivos. Quem quer vender sua alma ao grande Granola? Ele já tem a minha. E pisa nela como um tapete de banheiro. Quanta honra me dão os seus pés!!

Na escuridão, um gesto agudo se prepara. Um gesto definitivo para o acusador, jovem João Batista.

Granola não acredita no que vê e sorri. Um riso de triunfo e de sadismo.

Alguém dá um tiro pro ar. Todos os presentes se agitam. Começam a correr.

Alguém se aproxima de Alguém e o torna Ninguém com sua faca comprida e afiada.

Granola pega Rosa pelo braço. Rosa deixa-se levar. Não entende nada. O mafioso revela.

- Eis o seu filho! Filho, eis a sua mãe!

- O Murilo é meu filho?

- Tou dizendo.

- E você sabia disso?

- Aqui eu sei de tudo. Nada é sem eu deixar que seja.

Granola gargalha. O sangue jorra copiosamente. Rosa vai interiorizando sua veia dramática. Do silêncio de quem toma um choque passa ao choro, Pietá do inferninho.

- Nããããooooo! Meu filho, nãããããoooo!

Perto, o assassino – Lucas - faz um sinal de serviço feito para Granola. A relação entre eles era assim. Lucas aprendera a ler nos olhos de Granola.

Ao entardecer do outro dia, vemos Rosa, solitária, no cemitério, frente à gaveta do filho. Em gesto lento, sua mão se aproxima de uma colher de pedreiro, a que foi usada para vedar o último lar de seu rebento. Pega e a põe na bolsa.
Lucas acompanha de longe e fica sem entender o gesto.

- Cada louco com sua mania...

As imagens vão se apagando na mente de Lucas. Zoom no tempo presente, que se estabelece, em plenitude e agudeza.

“Eita, colher de pedreiro afiada. Aquela puta deve ter passado num esmeril...Ai.  Ela me esfaqueou bem no.....Por quê?... Será que ela vai fazer igual à minha tia? ..Meu pinto colocado numa caixinha feito um bibelô? Ia ser uma vergonha. Só falta essa..... O fio de meu pensamento se esgota. Meu labirinto já foi explorado. Cheguei. Não sinto nada de minha voz. Uma vergonha pra quem antes, como eu, era chamado de Zero Zero Lee.... Me sentia James Bond, o 007 do kiai, o bambambam secreto.... Eu tinha um kiai forte. Bem forte..Ai que dor, caralho!”

Um grupo estranho se aproxima do corpo de Lucas. Vai sendo cortado rapidamente por homens experientes em seu mister de tráfico de órgãos. Pegam seus rins, fígado, coração. E o último cheque que recebera de Granola. 

O que sobra é quase um buraco, quase uma gaveta talhada na carne. E uma falinha longínqua teimando num restinho de memória espalhado nos miolos lavando a calçada:

“James Bond, meu nome é James Bond..”

IMAGEM ACIMA - O Grito, Mazé Leite, óleo sobre tela, 2013





domingo, 26 de agosto de 2012

CRITICA TARDIA SOBRE TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS E ME ENTERREM COM MINHA AR-15


Vejo em “Tratado dos Anjos Afogados”, do poeta Marcelo Ariel, uma continuidade do livro anterior “Me Enterrem com Minha AR-15. Neles, há a preocupação com temas de natureza filosófica, porém, sem a intenção de eleger idéias estruturadas, de conclusões racionalistas. Suas indagações estão permeadas de mistério. Que bom que assim seja, pois, do contrário não exalaria poesia da melhor cepa.  Neles, percebo também preocupações de natureza social, onde é impossível não enxergar “os anjos afogados”, que, a meu ver, além das crianças vitimadas pelo sistema, somos todos nós, vítimas do desenvolvimento econômico sem limites. 
Gostaria de ressaltar, dentre os poemas de Ariel, o caleidoscópico “Cadenza dos Comandos”, que está presente em seus dois livros. Vejo na carta transcrita ali a ressonância do pensamento do poeta, expresso em quase todos os seus poemas, desde que se desconte as defesas da via das armas como resposta à opressão dos poderosos. Corrija-se: as armas de Ariel são de cunho estético e penetra angustiadamente fundo, buscando enfrentar a recusa, a nadificação dos excluídos pelo trator do capital, tipificado na capa por duas chaminés expelindo fumaça, símbolo do crime ambiental realizado em Cubatão, desde meados da década de 50, com o início da industrialização.
Reitere-se que Marcelo, em sua obra, preocupa-se sobremaneira com as crianças, vítimas indefesas do poder anencéfalo. Talvez se possa ver nisso um anseio de pureza, que sabe impossível, pois, como diz em determinado poema “deus é um recém-nascido com duas facas no lugar dos braços”.  E como disse em “Beckett-Celular”, criticando irônica e cinicamente a febre tecnológica dos novos produtos:“Vida Guerra atirou o recém-nascido do quarto andar e antes que aquele boneco do Farnese chegasse ao chão ele explodiu e de dentro do recém-nascido saíram vários celulares com MP3 e câmera digital...” Por Ariel ser um grande poeta, quase enxergamos nessas palavras uma certa profecia sádica, porém, se há sadismo ele está na cabeça inexistente do opressor político/econômico, cadenciando seu jogo cômico e bruto sobre nós.

DESABAFO I (INSPIRADO EM FRASES DE NELSON RODRIGUES)


Estou besta com o que me contaram, louro de merda! Besta! Bestapacralho! Tou com a minha cara no chão! A cara, a careta, tarada por saco rugoso! Ela vive me pondo chifre de enfeite! Por isso é que eu digo. Mulher como a minha......Deixa eu coçar aqui. Essa frieira é jogo duro. Não me abandona.
Volta a atenção pra fora. Um ator vizinho, no alto de um prédio, ensaia frases de Nelson Rodrigues.
(ATOR: Deus só freqüenta igreja vazia.)
Esse ator ai de cima, José, é um otário que sonha com o Grande Irmão. Vive repetindo Nelson. O grande Nelson.
Meu avô conheceu o tal. Os dois já traçaram juntos por sacanagem a mesma inflável mulher. Sabia, sabia? Pois fique sabendo. Os dois andaram também pegando aquela uma que se findou agora. Aquela que mudou de sexo. Era homem ficou mulher cheia de silicone industrial, não é? Droga levou ela, não foi? Não, não, pesada não, coca não, maconha não. Foi barbitúrico. Um monte ela pôs pra dentro. É certo isso como dois e três são vinte e três.
Sobre o fato da mulher que tirei da zona e que me chifra estou pasmado, quase biruta de tal inesperado. Sempre achei ela de frio nariz honesto. Errado? Fazer o quê?
Fui à igreja do Padre daqui. O Belmiro. É um diferente. Sempre em escuro bem vestido. Coisa de marca. Quase Black Metal. E a igreja do Padre Belmiro está sempre cheia. Entende?
Se ele não fosse padre, eu dava-lhe um tiro na boca! Ela minha mulher que tirei da zona do porto, com cicatrizes que um açougueiro fez nela.
...Hum, quem me avisou? O merduncho do FDP. Eu encontrei ele quando tava fazendo xixi. Quase mijei no seu pé. Ele já me aprontou muito. Não é que o diacho virou diácono? Ele não era viado? Vivia fazendo xixi de mentira só pra ver o viril dos alheios. E pensar que namorou minha irmã, um pouco antes de virar! A gente quando pequeno apostava esguicho de esperma à distância. Tinha troca-troca até, mas tudo na moral de homem.
Mas voltando ao padre, eita bicho  falso feito papel emitido por banco de fachada.
Um sem-vergonha em que mais não confio. Perfil de criminoso sexual. É o que penso. Não admito....
(ATOR:Não admito censura nem de Jesus Cristo.)
Não admito. Esse porra desse ator está nos ouvindo? Acho que não, né? É que às vezes, coincide. O Nelson que era profeta, isto sim.
(ATOR:Pois toda mulher gosta de apanhar. Só as neuróticas reagem.)
Isso é batata, eu bato nessa amante vira-lata lambedora de bata que me bota chifre baita. Além do mais, a desejo doentiamente. Mas não sou infiel.
(ATOR:E amar é ser fiel a quem nos trai.)
Concorda? Mesmo que seja em pensamento e com um padre, desconformo. E o senhor?
(ATOR:Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro.)
.....Olha, eu agüento o peso das galhas! Sei que amor verdadeiro não é só sexo.
(ATOR:Sexo é para operário.)
 Certo? Concorda? O que dou pra ela comer só eu dou. Outro não. Principalmente, ele.
(ATOR:O homem começa a morrer na sua primeira experiência sexual.)
 Esse ator de vez em quando atrapalha. Dou-lhe ainda uma mijada no cu....Depois, ao final.
 (ATOR:Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante.)
Entendeu?... Minha mania são as dentadas molhadinhas de Guiomar. E isso de maneira normalíssima. Quando nos conhecemos, ela me lambia a calvície e uivava, com fúria de desejo. E nos mordíamos a torto e a direito, da cabeça ao rabo. Um dia posso pedir pra ela te morder. Quer?
(ATOR:Sem dentada, não há amor possível.)
Em nossa cama, a metafísica é odontológica.
( ATOR:A cama é um móvel metafísico.)
O que me dói mais é que ela morde outro como a mim. Dizem que a mãe dela, aquela cadela, era assim também. Mordia todos os amantes. Um era ginecologista. Quase foi veterinário. Dizem pra mim os mais velhos que o zebu vivia exibindo as mordidas...
(ATOR:Todo ginecologista devia ser casto. Antigamente, a mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera. O ginecologista devia andar de batina, sandálias e coroinha na cabeça. Como um São Francisco de Assis, com luva de borracha e um passarinho em cada ombro...)
Bem, quer dizer. Pensando melhor, minha mulher ia subir pelas paredes se recebesse comida de um veterinário. Não estou sendo coerente.  Mas, olha. Escuta.
(ATOR:Toda coerência é no mínimo suspeita.)
E eu não tenho certeza de nada. Contou pra mim um salta-pocinhas, mas eu não vi o ato.
(ATOR:O marido devia ser o último a saber.  Aliás, o marido não deve saber nunca. )
A gente só é isso quando sabe, quando a gente vê, não é? Mas eu, por enquanto, não vi. Eu duvido do ato em si.
(ATOR:A dúvida é a autora das insônias mais cruéis.)
 Preferia que não me contassem. Não tenho amigo. Um amigo não inferniza a gente assim. (ATOR:Amigo é um momento de eternidade. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Quem não é canalha na véspera, é no dia seguinte. Hoje, é muito difícil não ser canalha.)
Certa ocasião, ouvi o Norato Ratono, esse ator filho de quenga puta que vou pegar já, já, esse zebu, falar, e concordei. Disse que desistia da vida eterna. Por causa da pureza fedorenta dos mais santos, geralmente versados na politicalha da cidade. Ratono Norato diz-que preferia ser um canalha abjeto, capaz das bacanais mais horrendas..
(ATOR:A pressão da vida atual trabalha para a nossa canalhice pessoal e coletiva.)
Não é, hein? Fala. Olha, até menino é canalha, atualmente. Um dia, abri a porta do quarto e flagrei um cachorro entalado nela. E um menino olhando com sarro. Mas ela não pode ter nenê. É uma cadela castrada, pastor. Uma mulher, só que nasceu de quatro patas.
Agora, ela viciou na ração que o Padre Belmiro dá. Pode isso. Por isso quero da sua igreja oração poderosa anticatólica anti-Belmiro. Tou com nojo....Ai, Zezinho, acho que vou vomitar...
(ATOR:Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina, quando tem um filho, melhora.)
 Foi pouquinho. Depois, eu limpo. Só uma pastinha de nada, né? Não tou doente não. Devo ter comido alguma merda por aí.
(ATOR:Certas épocas são doentes mentais, como a nossa.)
Talvez eu devesse procurar a morte.
(ATOR:Deus prefere os suicidas.)
Mas eu não consigo. Ta escutando meu coração, Zezinho? Este desgraçado aqui bate por uma canina infiel....
(ATOR:Todo desejo é vil aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhh!)
Vai pro teatro, seu merda! Que baque é esse? Deixa ver da janela o que ess’ator besta tá fazendo!
Lá embaixo, como um desenho animado, um lago vermelho com olhos e bolhas na superfície.
Ih, ele caiu. Quem mandou. Ler texto no ponto mais alto do prédio.
O papagaio, chamado por ele carinhosamente de Louro José ou Zezinho, grita com seu tom contundente e claro.
-        Corno! Corno! Corno!
Altamirando dá-lhe um chute, como sempre.
Beberica um vinho. Pega o livro que estava lendo, com frases de Nelson Rodrigues:
“O amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira. É abjeto que um homem deseje a mãe de seus próprios filhos”,
“Qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea”,
“A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual”,
“Com sorte, você atravessa o mundo, sem sorte, você não atravessa a rua”,         
“Qualquer amor há  de sofrer uma perseguição assassina”,
“Somos impotentes do sentimento e não perdoamos o amor alheio. Por isso, não deixe ninguém saber que você ama”.
Ele acaba dormindo, engatando de primeira num sonho, onde sonha que acorda levando um chute do papagaio, que no sonho fala mais de mil palavras. A primeira é:
- Estou besta! Estou besta!

 

 

DE REPENTE UM ZUNIDO



De repente, a claridade, um zunido.
Lera em algum lugar a respeito de barulhos estranhos vindos de nuvens escuras.
Certa vez fora abordado por Android que lhe indagou sobre buracos da internet das quais saíam personagens metálicos.
Outra vez, se queixara por que um ponteiro de mouse se lhe fincara no peito.
Mas ele não tinha medo do futuro, não ficava arrepiado com o desconhecido, até mesmo porque não tinha pelos a serem eriçados.
-Porém, como evitar o bit de nervos?
-Como fugir às indagações filosóficas?
-Somos apenas um ajuntamento de vácuos?
Por que existia?
-Haveria luz do outro lado?
Estava só num universo quântico?
Deus era um dedo a se aproximar do Power?
-Quanto mais aceso o monitor mais vida?
Esquecera, por excesso de tergiversação, de atentar para os lados, onde alguém tentava desarquivá-lo; um Cavalo de Tróia, passando a galope, estraçalhava suas pastas mais importantes.
Puxou da camisa eletrônica antiga nova possibilidade de ontogênese, lançou mão de fosforescências com que atingisse a Mônada fundamental de seu ser.
E eis que, inopinadamente, olha para baixo, coisa que nunca antes conseguira.
A energia oscila e, então, na oscilação, dúvida binária:
-Serei apenas um personagem da tela em descanso?
Veio a vontade de acenar para olhos à frente que lhe pareciam cada vez mais reais.
-Serão olhos de um deus ou de uma deusa?
Ajoelha e, contrito, observa o antivírus como um Filho Divino a limpar-lhe o espaço dos Cavalos de Tróia do Apocalipse.
Iluminado e consciente de ser objeto e não sujeito, pensou em Diógenes morando no barril e manifestou o desejo aos olhos frontais de morar para sempre na lixeira.
Para ele, que fora um mestre em criar programas complexos, aquela clínica psiquiátrica era um computador.

sábado, 25 de agosto de 2012

PARA A MENINA DE 2,33 METROS

A mulher mais alta do mundo, a chinesa Yao Defen, com 2,33 metros, morreu aos 40 anos em novembro de 2012, devido a complicações provocadas por um tumor na glândula pituitária.
Quando li a notícia, pensei nos problemas pelos quais passou. E imaginei a adolescência de mulheres altas como Yao.
Como deve sofrer uma adolescente de 2,33 metros! 
Se já é incalculável o sofrimento de uma menina de um metro e setenta, como diz minha filha, imagine o de uma moça de altitude!
Desde pequena, ou seja, desde grande, os problemas de uma adolescente gigante são de grandes dimensões, eu penso.
Está condenada a olhar as coisas sempre por cima. Deve ser triste se enxergar Gulliver num país de anões.
Desde cedo, o transtorno de não caber nas telas, nas fotos, nas festas. Todos olhando esquisito, com desprezo. Sempre à frente um terremoto potencial.
Nos seus sonhos, ou, para ser mais preciso, nos seus pesadelos, vemos, e ela vê bem mais: os solos rachados, portas quebradas, pistas tremendo, namorados pisados ou esmagados sem querer.
Suada, ela acorda, senta na cama de súbito e bate o chifre num dos caibros do telhado. 
Em outros pesadelos, se vê nos restaurantes mais movimentados, com as multidões a lhe vaiarem a altura, varando o teto e avançando pro alto, a desafiar as nuvens.
Mas se eu encontrasse uma menina de 2,33 metros eu lhe diria: menina linda, a incompreensão não atinge só você, afeta também meninas mais baixas, umas gordinhas, outras com bastante espinha, outras com um seio só, outras com gostos exóticos, enfim, tem uma porção de meninas diferentes, que provocam nos não-diferentes a inveja dos que não vivem em série, como uma massa de torcedores de futebol, ou adoradores de ídolos. 
Menina, você nasceu para ser ídolo, pois, só os que destoam podem ser ídolos. 
Ah, menina de 2,33 metros, tivesse eu tua altura e vinte anos de idade, bailaria com você em cima das ondas do mar! 
Tivesse eu 2,33 metros e vinte anos, voaríamos pelas ilhas do amor desconhecido! 
Tivesse eu 2,33 metros e vinte anos, iríamos aos lugares encantados, seguiríamos coelhos corredores e tomaríamos chá com Alice! 
Entraríamos em restaurantes maravilhosos e todos nos olhariam com seus olhares maravilhados! 
Tivesse eu 2,33 metros e vinte anos de idade, exploraria seus olhos com toda a minha habilidade de nauta dos azuis!
Isso eu diria para uma adolescente de altitude. 
Só por um momento, me faria pequeno, e me perderia em suas pestanas e usaria seus cabelos como cachoeira!
Mas, no momento, só posso dizer: Descanse em paz, Yao.




CACHAÇA BOM DE PAPO


Mariano era o motivo das conversas no bar do Salim Portuga, um dos mais lotados ali no Jardim 31 de Março. Tinha ele uns 50 anos, cabelos de deserto, descuidados fios num terreno craniano calvo e vermelho, desde há muito. 
O português dizia que antes ele era saudável como um touro, dançarino exímio, piadista, bebedor, sim, mas não daqueles escandalosos.
Enfatizava o português: 
- No passado, era um homem de pele queimada, jeito de lutador de boxe, ninguém folgava com ele.

- Que fedor tu tá!
-Vai te foder, ó Pouca-Sombra!
O Tá-Raso-Tá-Fundo, aquele puxa-saco, diz que Mariano costumava defender as mulheres e os frágeis só na frente dos outros. 
-Diz-que ele torturava e abusava de uma sobrinha. 
-Mentira! - dizia o Careca. - Homem bão tava ali!

- Rapa, um dia deram parte dele na Delegacia por tirar o pau pra fora pras mulheres que passavam na frente da casa dele!
- Mentira! - dizia o Careca que, na juventude, costumava tomar as namoradas de Mariano. Hoje, dava umas beliscadinhas na irmã do amigo.
Outros, como o Cachaça, diziam que Mariano era justo mas cobrava por fora. O Barriga mesmo já tivera que pagar pra ele dar surra num sujo aí.
Que tinha força, tinha. Quantas vezes, aleijara alguns do bairro, deixando-os encostados por um bom tempo, de saco roxo ou de chifre furado.
Hoje, não é nem uma pequena sombra do que era. Não tem mais motivos para se alegrar. 
O dia todo fica pendurado no muro, batendo os braços como asas. Desce quando a fome aperta. 
O Cachaça, um malandro velho metido a poeta e com ambições políticas, porém, bom caráter e amigo da moçada, jura que achou um diário com a história do Mariano e a Galinha Austríaca.

Aliás, ele já repetiu a história do Mariano umas mil vezes. E sempre acrescentava um pouco.
Vez em quando, manda todo mundo do Bar do Tião sentar, tira um caderno velho onde ele diz que copiou o diário, e começa a contar, com uma dose de invenção, pois, nisso ele é bom.

Tinha o diário todo na cabeça, falava.
Da última vez, como tava passando uma gostosa, uma tal que Cachaça já cercava há muito tempo, a filha do....como é, mesmo? Bom, os leitores me perdoem. Me ....Não, não, já me lembrei...Me esqueci de novo. 
Cachaça esperou ela dobrar a esquina. Na verdade, todos esperaram ela dobrar a esquina. A beleza de uma Vênus madura, em câmera lenta, sorriso cândido, mas alguém lá no bar queria ver o sorriso? Nada.. Todos queriam ver o ondear daquele oceano de bela carne bem batida pelo tempo.
A Vênus voltara a morar na casa do pai, o Seo....Morais! Lembrei! Tinha seis filhos ela, mas sua beleza só fazia era crescer a olhos vistos e revistos!

O Cachaça se irritou:
-Bem, gente, vamos olhar pra mim, por favor. Aquela ali ainda vai ser minha. Não é pro bico de vocês não.
O Deixa-que-Eu-Chupo se manifestou:
-Que é isso, rapá. Ela nem sabe quem é tu. Eu conheço o velho Morais. Se tu se aproximar, leva um tiro de ver Jesus sacudindo as bala do manto.
Todo mundo do bar gargalhou.
-Chega de rir às minhas custas. Vocês não querem ouvir mais, né? Então, dá licença, que eu vou m'embora..
- Calma, ó raios! Parece até que tu não conhece a turma...
-Tá bom, tá bom. Mas traz aí uma com cambuci pra "mim" lembrar melhor.
O Salim, que era chamado de Portuga, trouxe a bebida. Cachaça meteu goela abaixo, tirou o caderninho do bolso e começou a ler o que ele chamava de diário de Mariano:
“Mariano era o motivo das conversas no bar do Salim.......

Ninguém notou que era personagem do Diário de Mariano.
Cachaça vai metendo o caderninho no bolso, enquanto fala pros colegas:
- E foi isso. Com agilidade de um galo, Mariano pulou pra cima do muro e cacarejou de amor. Sua esposa nem desconfiou do motivo da loucura. Inda guentou uns tempos com o traste. Afinal, era pai do filho que iria nascer. Depois, se mandou.
O careca quase chorando:
- Cada vez que tu conta, eu me sinto parte dessa história....

- Não sei não, viu, Careca, mas tu chora demais, home. Se continuar assim, tu não fica mais na nossa turma. Parece um baitola...
Careca ficou sério. Se levantou pronto pruma briga.
- Um o quê? Se me chamá de baitola de novo te quebro as fuça.Eu num sou baitola, sou viado, e com orgulho.
Nisso, uma moça passa, olha, sorri e pisca pra Cachaça. Ele não resiste. No entanto, quando vai saindo, todo lampeiro, dá de cara com um soco de Mike Tyson no quengo...A mulher batia forte. Pegou ele pelas “zurebas”e foram pra casa. 

- Pera aí, Zuleide, eu explico....
- Em casa.
O casal passou por Mariano, que estava lá, em cima do muro, a amargar a saudade de um amor súbito e não consumado.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

PRAZER

Prazer. Prazer: felicidade. Antes o desejo. Permeando segundos. Permeando minutos. Permeando horas. De dia, contido. Quando fora das vielas em penumbra. Insone em nossas noites. Pensamos em controlá-lo. Iludimo-nos. Afinal, ele foge a princípios sólidos.
Ele, o prazer desejoso de mais prazer, é capoeirista nato, desde antes da escravidão. E desde então escravizava.
Quantas rasteiras dá o prazer à razão em nome da felicidade dos sentidos! 
Deixa-nos insanos na infância diante das comidas gostosas, diante da Natureza e suas árvores acolhedoras. Quantas sombras, quantos frutos, quantos prazeres embaixo de uma árvore frondosa! 
Quantos sorrisos femininos dando-nos prazer no contemplá-los simplesmente! 
Na adolescência, diante das raras revistas de modelos de quadris voluptuosos, o desejo levado ao prazer do tato. E curvas nada sutis estouravam nossas retinas com mares de prazer.
Na idade adulta, o prazer de ter um carro, uma casa, uma esposa, filhos, tranquilidade financeira.
Mas as instituições não seguram o prazer apaixonado. Quando domina a paixão, os braços institucionais são moles para conter o desejo que leva ao prazer. Flácidos. Gelatinosos. Todavia, a paixão perecível tem limites.
O prazer, em seus primórdios, se acerca da paixão. Quer domar o amor. Fazer do amor gato e sapato. Mas o tempo passa.
O amor vai ficando em casa, quando o caminho da vida está ao meio. O desejo sai, atiçando o fogo dos corpos ante outros corpos.
Intensifica a eletricidade de nossa derme, e dá à nossa circulação sanguínea consistência de lava.
O desejo almeja satisfação, chega a ser até cruel no seu desespero pelos prazeres. Não está sujeito às presas da moral. Esta subordina-se às relatividades da história, plena de condicionamentos religiosos e filosóficos.
Definições tentam acorrentá-lo, mas, ante a química dos corpos, emoções quebram cadeias e ensandecem o prazer.
Ao fim da vida, a metamorfose do prazer. O desejo moribundo está só, deixando de respirar, em síncopes. A paixão o deixou.
Então, resta quem? o amor, o prazer do companheirismo, o prazer da espera dos mistérios que estão quase à soleira.