domingo, 14 de setembro de 2014

A FOME E A IRA DAS VINTE E UMA


Estela acordara naquela cidade sem saber como fora parar lá.
Só lembrava de estar num ônibus que se dirigia à cidade de Registro, estado de São Paulo.
E de repente acordou ali. No leito de um quarto decorado à moda clássica romana. Uma cama de casal muito bem arrumada e cheirosa.
"Dormiu bem?"
A voz veio de um homem velho, vestido com um roupão de seda. Seu nome era Antonin, filho de francês com brasileira.
"Onde estou?"
"Na minha residência. Você precisava de um lugar para dormir. E eu disse que poderia ficar aqui."
"Não me lembro de nada disso"
"É verdade. Você deve ter bebido muito."
Ela se levantou, meio cambaleante. Foi até a janela de vidro.
Uma névoa muito densa iniciava seu domínio, mas ela enxergou alguma coisa.
O que viu deixou-a tão perplexa quanto ela ter surgido ali, sem lembrança do que a levara até aquele lugar.
"O que são aqueles?"
" Tá falando dos mausoléus?"
" É. Você mandou construí-los?"
" Sim, pra cada uma das minhas falecidas mulheres construí um."
" Você teve tantas mulheres assim?"
" Vinte e uma para ser exato."
" E todas morreram?"
" Infelizmente."
" Que Deus dê paz para elas e as liberte!"
Quando Estela expressou este desejo, uma força imperceptível começou a alterar o ambiente. Quem tivesse ouvidos apurados diria que alguma coisa estalou além, nos mausoléus.
" Estou um pouco tonta.."
" Durma então. Depois nos falamos."
Ele notou que logo ela estaria totalmente à sua mercê. Era só preparar o ambiente para a inoculação mortal.
Ajustava para ela o vigésimo segundo mausoléu. Gostava de possuir mulheres mortas. Mas antes armava, para cada uma delas, um casamento fictício, para o qual contratava sempre atores amadores, aos quais dava um fim posteriormente. 
E fazia questão que todas as meninas tivessem treze anos, fossem loiras, tivessem um metro e sessenta e cinco, e pesassem quarenta e oito quilos.
Antes da aplicação da injeção em Estela, resolveu tomar um banho. Terminado o banho, estava tão mole, tão fatigado, que resolveu tirar um cochilo, antes de fazer o que planejou. Olhou pro lado e gostou do que viu. Deitaria ao lado dela por alguns minutos, os últimos da vida da menina.
Para ele, foi uma noite incomum. Cheia de pesadelos. Sombras voejavam por sobre o quarto, asas estalavam na escuridão, fantasmas davam asas à liberdade da madrugada, antes que o galo cantasse.
Quando Antonin acordou, de súbito, devido ao estrondo das aves das sombras, olhou com extremo susto à sua volta.
Estavam ali os fantasmas de suas vinte e uma esposas, que, sem perda de tempo, avançaram sobre a jugular de Antonin e sugaram todo o seu sangue, após o que, incontinenti, o arrastaram para invisível abismo, ele aos gritos que ninguém no mundo dos vivos ouvia....nem dos mortos tampouco.
De manhãzinha, Estela despertou. A seu lado, Antonin, de olhos esbugalhados e corpo encaveirado, tornara-se um defunto, ou melhor, uma múmia, parecendo estar morto há séculos sem conta.

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