sábado, 6 de setembro de 2014

SOMBRAS SOBRE ALMAS



Antonio estava ali há muito tempo. Não incomodava ninguém. Viveu naquela chácara luxuosa desde o nascimento, há vinte e cinco anos.
Até que....se apaixonou perdidamente por Arlete, a filha mais nova da costureira, a única daquelas bandas nesta profissão, conhecida como Dona Suzana, que falava mal, pois possuía a língua cortada. O avô de Antonio a conhecera em outros tempos.
Arlete era tarada, ou seja, gostava demais de seu bichinho de estimação, o Tyrone. Trazia-o sempre bem protegido. 
Quando não dava pra ela ficar perto de seu animalzinho, deixava-o trancado no quarto.
Um dia, Antonio necessitou que Dona Suzana costurasse uma de suas calças. Foi até lá. Quem o recebeu foi Arlete.
Serviu-lhe um cafezinho com bolachas. Bolachas das baratas, sem qualidade e sabor. Mas isso pouco importava. Ficara encantado com a beleza da filha da costureira. E a menina também sentiu uma atração por ele. 
Começou a visitar todos os dias a costureira, fazendo encomendas necessárias e desnecessárias, com olhos na filha, naturalmente.
Os fatos foram assumindo cada vez mais sua inevitabilidade. 
Com o tempo, noivou, casou, mudou-se com a mulher para uma casa em Paranapiacaba. 
Ela, claro, pediu pra levar seu bichinho. Antonio não se opôs, apesar de uma certa antipatia gratuita. Foi tolerando o que ele chamava de "hamster", embora o animal só fosse parecido com um. Arlete lhe colocou num canto da cozinha e foi deixando. 
O tempo foi transcorrendo. A rotina foi tomando assento. Até que...a mãe.....
Bem, fazendo um flashback: o avô de Antonio, Dr. Leônidas, foi até o pai de Suzana, quando esta tinha nove anos, e trocou-a por um cavalo manco. Levou-a pra uma casa pros lados de Santo André, e fez de tudo um pouco com ela. 
Contavam que tivera uma família para os lados de Cubatão. Mas dela só restava um filho, criado pela avó.
Nas relações sexuais com a menina, tinha uma tara estranha: gostava de enfiar na mesma objetos estranhos, geralmente legumes, que ele cozinhava depois e comia com grande apetite.
Tal qual a filha, a mãe também gostava de bichinhos de estimação. Só que de bichos mais perigosos. Geralmente, bichos que estavam morrendo. Ela ia até eles e os melhorava com a imposição das mãos, dom inexplicável que se manifestara desde a mais tenra idade. 
A partir das curas, ganhou um respeito inusitado da Mãe Natureza.
Quando completou doze anos, Dr. Leônidas pegou-a e levou-a para o fundo de uma mata próxima, onde havia uma cachoeira.
O que ele pensava fazer com ela? Matá-la? Teria encontrado uma menina mais nova que ela pra fazer outro escambo? Por que ele levou o machado?
Na verdade, todas essas suspeitas estavam certas.
Ele esperou que desse meia-noite. Amarrou  Suzana forte numa árvore e, abrindo a boca da menina à força, cortou parte de sua língua com uma faca amolada. Ela gritou, mas ele não parou, a não ser quando ela teve um desmaio. Foi quando o Dr. começou a afiar o machado.
Sentado numa pedra, não viu, não notou sombras de árvores se aproximando e o cobrindo. E, à medida que era envolvido, coisas estranhas iam acontecendo: foi ficando cada vez mais jovem, até que virou um bebê. Então ocorreu curiosa transformação: mudou de sexo. Ficou uma linda menina de cabelos ruivos como os da futura mãe adotiva. Sim, Suzana adotou a criança e deu-lhe o nome de Arlete.
Suzana ficara livre das cordas como por encanto. Porém, como seu coração não era totalmente puro, as sombras não devolveram-lhe parte da língua. 
Suzana tornou a menina praticamente uma escrava. Surrava-a constantemente. Chegou uma vez a amarrá-la numa árvore, porém não teve coragem de matá-la.
Quando converteu-se ao Racionalismo da Cruz, tratou de ocultar sua má inclinação. Tornou-se meiga e generosa. Começou a tratar Arlete com todos os desvelos. 
Viveu feliz com a filha, até que, quando já estava morando com ela e o genro, morreu, sendo, em suas últimas horas, envolvida por estranhas sombras, que avançaram por todas as janelas, portas, e brechas. Ampararam Suzana como anjos de algum paraíso abandonado, que as recebeu com um sorriso beatífico em seu rosto.
Foi quando Arlete e Antonio completaram um ano de casados. Ou mais ou menos isso.
Arlete ficou estranha. Lembrou-se que sua mãe dissera que fora o avô do marido quem cortou parte de sua língua. Sua mãe contou-lhe quando Antonio levou as alianças de noivado. Ele providenciou para que velório e enterro saíssem a contento, de modo que sua amada não se estressasse desnecessariamente.
O dia do enterro foi um dia cansativo. Sua esposa tivera um ligeiro problema de pressão baixa e fora levada pra casa pela prima, que aliás era enfermeira. 
Arlete, recuperada instantaneamente, foi à cozinha e alimentou Tyrone. O relógio mostrava que era meia-noite em ponto o momento em que a boquinha do bicho devorou o queijo que ela dera.
Antonio não teve remédio a não ser ficar no cemitério até que o enterro se desse. Após o enterro,  despediu-se de todos e voltou pra casa.
Chegou em casa, e não sentiu o cheiro de carne morta, nem o cheiro de sangue humano. Foi à cozinha, pegou uma chaleira das antigas e encheu-a de água. Enquanto fazia isso, deu uma olhada com insano ódio para o animalzinho de Arlete. Ele estava ligeiramente maior, fora da gaiola, e dormindo. No entanto, o ódio súbito que lhe viera do bicho enevoou-lhe o juízo, impossibilitando a Antonio equilibrada avaliação de diferenças. 
Desejou esmagá-lo. Lançou mão da chaleira, antes de ferver, e deu um banho em Tyrone. Então, estranhamente, iniciou na pele do "serzinho" uma espécie de fervura de água fria. Tyrone não acordou, mas começaram a brotar bolas de pelo em suas costas. E cada uma delas dava origem a um "hamster" travesso. Os animaizinhos se libertaram da gaiola facilmente e começaram a montar em tudo que era móvel da casa. Começaram a quebrar coisas, a derramar líquidos, enfim, a fazer tudo que dizem que um saci e uma criança travessa faz.
Antonio sentiu uma dor no coração e caiu. Arlete, toda melada de sangue, apareceu.
Chegou perto de sua orelha direita, deu um grito tão lancinante que parecia saído de um filme de terror do Zé do Caixão. Depois lhe disse, sadicamente:
- Teu avô cortou a língua de minha mãe!
Porém, Arlete não notou o hálito de Tyrone, que não resistiu ao aroma da carne da "sua dona", ao contrário do protagonista de Crepúsculo. O bichinho tratou logo de comer os dois.
Como forma de acabar com o mal que ali se instalara, as sombras, após o fato trágico ocorrido,  surgiram e, de forma rápida, cobriram todo o vale, fazendo com que só a natureza ficasse, sobranceira, sobre tudo, varrendo todo o traço de humanidade e do mal que esta atraía.

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