terça-feira, 10 de dezembro de 2013

FANTASIA DE AMOR DE UM HOMEM ANTIGO



O velho Nado caminha, cambaleante, com uma garrafa de cachaça, na direção da praça.  

Um cachorro o segue, o Quimera, vira-lata quase gente. Amigo sem igual tá ali. 

Quando Nado dormia demais, sempre estava com a língua a postos. Sua lambida era quente e terna. Quimera não gostava era de tomar banho, mas, Nado mergulhava com ele no chafariz três vezes por semana, no início da profunda madrugada.

Nado é um homem grande. Perdeu a conta de sua idade. Dá a impressão de ter sido lutador de boxe, peso-pesado. Ou rolado a pedra de Sísifo. Ou a roda de Íxon, o falador, lábio solto, fofoqueiro. Bem podia ter ficado calado, mas foi dizer que comeu a esposa de Zeus. Se fodeu.


No canto, um cão em sacanagens com uma cadela e ao longe um mendigo cego larga as bengalas e os ouve, atento ao som dos movimentos animais.

Nado senta num banco e consulta um calendário. Espera alguém. Acaba dormindo no banco horas depois.

Sonha colorido. Seu sonho se incumbe de trazer-lhe o passado e o mostra pra nós:

Uma jovem atriz descansa num banco de praça, esperando os companheiros, fumando um baseado.

O grupo dela apresentou uma performance teatral de apoio às reivindicações de um sindicato.

Combinaram de fazer a apresentação nas portas de uma fábrica ali perto.

Quando terminaram, o grupo se dispersou um pouco, ou para ir ao banheiro, ou para telefonar ou realizar outras ações e a jovem atriz fora parar ali, local de reencontro da turma, na Praça Joaquim Montenegro. 

Ela chegou antes. O nome dela? Aurora. Uma moça bela de doer, como um raio de sol dos olhos de Helena, a bela de Tróia e de Fausto - de Goethe.

Um garoto de seis anos de idade estava á janela de uma das casas que ficavam de frente à praça.

Quando ela foi chegando, rebolando devagar, cansada, suada, sapatos nas mãos, os olhos do menino, abertos e castanhos, foram atingidos pela origem de universos que surgiam nela, uma luz que o menino jamais vira nas estrelas, ele que estava acostumado a mirar o céu.

Incontinenti, o amante precoce se lançou à praça. Não de maneira fácil. Ele tem um objetivo e por ele pisa no rabo do gato, escorrega no cocô do cachorro, derruba um vaso de plantas, tropeça na mangueira com a qual sua mãe lavara o quintal e encontra o portão fechado. Pede a mãe para abrir o portão. Sua mãe, brava pela mangueira, pelo vaso, e por tudo o mais, não abre. O garoto chora que chora, mas não adianta.

Sua mãe corre pra cozinha quando ouve a panela chiar. É nesse momento que ele se aproveita e sobe no portão, impulsionado pelo motor da fascinação amorosa.

Aurora observa sua acrobacia no portão, não acreditando na proeza. E fica mais embasbacada ainda quando ele declara seu amor com magro vocabulário.

Ela que não esperava a declaração titubeia, mas, lhe diz:
– Sabe, eu....Não sei nem como....Mas...eu me sinto feliz por...uma pessoa como você gostar tanto assim de mim...Nunca vou poder retr.....Principalmente, por sentir que seu amor é puro...Talvez no futuro a gente.....
-Quando?

Uma colega chega de repente. É Betina, uma atriz do grupo de Aurora, linda, de uma beleza gótica, com um quê de equilíbrio exótico. Sempre primando pela depressão representada. Conseguia porém se distanciar de si mesma nos personagens. Fala, de modo precipitado e agressivo:
– Nesta praça, daqui a setenta anos.  Vê se te enxerga, garoto! Vamos, Aurora!
– Você tava ouvindo o que eu falava com esse garotinho?
– Tenho de ficar de olho nos meus interesses. Afinal, eu te amo.
– Não tem cabimento, Betina. Olha a idade dele.
– A turma tá esperando lá adiante. O sindicato já pagou. E a gente tem muito o que fazer.

Aurora, comovida, alegra os ouvidos do garoto.
 – Eu te amo muito, viu?

Aurora dá-lhe um beijo. Entrega ao garoto um bentinho com versos de Camões.
– Daqui a setenta anos? Nessa mesma hora?

Outra vez, Betina se mete:
– Claro. Ela vem daqui a setenta anos e nesta mesma praça. – Baixinho: - que piada.

Aurora olha-o ternamente durante largos segundos. Apressada por Betina, continua seu caminho.

Os anos passam. Vemos o menino, já quarentão, declamar numa emissora de TV. O diretor se aproxima.
 – Nado, vê se você articula mais as palavras, abre mais a boca..
 – Vou tentar.
–  Tentar não. Você vai fazer. Que porra, Nado. Você quer acabar sua carreira?

Quando o diretor se afasta, Nado pega uma garrafa no canto e entorna.
O Assistente de Áudio lhe entrega um envelope.
-Ah, alguém deixou isso agora pouco pra você.

Nado abre e lê: “Setenta segundos, setenta minutos, setenta horas, setenta dias, setenta meses, setenta anos..”

Tudo volta à sua mente de uma maneira delirante. Será que ela. Tenta imaginar. Age de modo impensado e desespera pela escada abaixo. Empurra a porta, vai até a esquina, caminha para todos os lados e não encontra o que quer ver.

O Diretor, preocupado, desce atrás de Nado.
– Ei, você tá maluco, Nado? Esqueceu que a gente tem compromisso e você nem assinou contrato? Lembra do que te falei sobre acabar a carreira?
– Tá bom. Desculpe. Você tem razão. Deve ser ansiedade, tensão nervosa, sei lá. Vam’ simbora.

Nado acorda, de repente. Como se algo o tivesse cutucado. Olha para todos os lados. Quimera ainda está ali. Acaricia seu velho amigo.

Enxerga o cego, agora com as mãos nos bagos e nota o casal de cães, agora grudados. Um frentista, de um posto de gasolina próximo, maldosamente, se prepara para dar um banho no casal canino.

Vê ao longe uma senhora que passou com uma flor. O cheiro ficou no ar. Um cheiro familiar, cheiro indelével, guardado na caixinha da sua memória...

A roda do tempo é cruel. Nado afundara no alcoolismo aos quarenta e poucos anos. Dormiu em pequenos quartos, depois em pequenos becos, depois, na rua. Mas nunca deixa de levar, para todo lugar aonde vai, aquele bentinho no bolso. Como se não esquecesse uma promessa. Que loucura!

Nado não tem forças pra correr atrás da dona do cheiro, não tem forças nem pra andar. Volta a dormir. Engata num sonho de novo. Um sonho-presente, uma dádiva do Universo, que até aquele momento observava-o, metafísico.

Parece que vemos um anjo jovem. Um anjo com um broche no formato de uma pequena foice. Camiseta regata, com uma caveira desenhada na frente, tênis preto, luminoso, bermuda cinza, "piercing" de crânio na língua e alargadores em ambas as orelhas. Podemos colocar ainda um indefectível aparelho com a forma daquelas macas tumulares. Mas bem limpinho, brilhando mesmo.

Vocês podem imaginar que seja isso uma invenção de um escritor para amenizar a desilusão de um personagem que, como o escritor, desconfia muito de si.

Entremos no sonho de Nado. Está sentado no banco, agora mais novo, e, sob reflexos brilhantes de arco-íris, enxerga na ponte próxima uma senhora elegante. 

A senhora com uma flor? É ela, tem certeza. Está cheirando agora um bentinho. Ele procura em seu bolso e percebe que não tem mais o bentinho. Pode ter caído, enquanto ele dormia.

Corre na direção da senhora. Com agilidade jamais tida, ou, se a teve, foi na juventude esperançosa de amor. Parece que ela está tão distante. Ele acelera e se dá conta que penetra num terreno fantástico, ação facilitada por este escritor, que sabe dos traços de si no personagem.

Nado se transporta com a amada senhora para o passado. Estão mais novos, com idade ao redor dos vinte e cinco anos. Ela está grávida.

Ele ensaia poemas num estúdio, com a mais perfeita articulação, enquanto sua amada, uma flor nos cabelos, o observa, as mãos na barriga, acalmando um hábil chutador. Ou será uma?

Numa dimensão mais próxima de nós, recolhem os seus restos para a vala dos indigentes. 

Quimera ficará ali, durante anos, alimentado pelos circunstantes. Até evaporar, num dia de chuva, pois, quem nota um cão que evapora?

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