terça-feira, 3 de dezembro de 2013

ERA UMA VEZ A VACA VITÓRIA

No bairro, estava acontecendo muita morte violenta. Geralmente, de menores de idade. 

Alma entra na avenida do cemitério, braços com Hudson, e atrás o indefectível Valdo, o amigo de todas as horas, com sua câmera habitual. Veem num poste um cartaz da campanha nacional contra a violência e extermínio de jovens.

Ela estuda na Escola Técnica Federal. Orgulho de sua família, que, tempos atrás, já imaginava-a perdida para as drogas.

Entrara nas drogas em razão de más amizades e amor adolescente. Um garoto a atraía pela beleza e atitude. A irmã do garoto, a Vanda, percebendo isso se aproximou da frágil Alma. Daí por diante foram bailes, encontros em apartamentos, luaus, festas em lugares afastados. Quando foram ver, Alma estava à beira do crack, através do vício do mesclado.

Hudson era o garoto. Inteligente, porém revoltado e sonhador. Entrara nessa também por amizades. Morava num lugar que era cercado de biqueiras. Sua mãe adotiva estava sempre ausente. O pai morrera quando ele tinha quatro anos. Morrera enforcado com um fio de ferro elétrico dos antigos. Por que suicidara, ninguém jamais atinou com o motivo.

A mãe verdadeira, Guiomar, era auxiliar em alguns negócios escusos de um empresário local, Cassiano Ventura, ligado ao crime, ao qual Hudson sempre denunciava e acusava. Guiomar aliciava mocinhas, geralmente, de famílias miseráveis, para alimentar as boates do empresário.

Guiomar não sabia do destino de Hudson. Mas não esquecera a marca de nascença que ele tinha no pescoço. Um detalhe bobo que nunca saíra de sua memória. Hudson tampouco sabia do paradeiro dela. 

Hudson e Alma se libertaram do vício graças à ajuda de um amigo comum: Valdo. Ele conhecia um grupo de adictos que tentavam se livrar da dependência de drogas e levou os dois até eles.

Valdo conhecia Hudson desde os sete anos. Hudson costumava defendê-lo dos marmanjos que tentavam agredi-lo no primeiro grau. Valdo era um menino homossexual, e sofria muito preconceito nos lugares onde estudou. Mas, Hudson nunca ligou pra isso. Até tentara uma experiência com o amigo, na fase das drogas, porém, não tinha jeito, gostava era de mulher.

O fato é que, tanto Hudson quanto Alma, ficaram limpos. E começaram a dedicar suas energias à luta estudantil.

Vanda, a irmã, dizia que não precisava de ajuda. Mas Hudson e Alma e Valdo não desistiriam dela.

Eram muito aguerridos, particularmente, Hudson. Cutucava o Poder sem medo de represálias. E não se limitava à área estudantil.

Ultimamente, eram presença constante no cemitério da cidade.

-Ela só tinha nove anos - desabafou Alma.

- Caraca, encheram ela de maquiagem.

- Pra disfarçar.

-A gente fez o que pôde, alminha.

-Será?

-Pelo menos, ajudamos a esclarecer o caso.

Valdo ajeita a câmera e fala em alto e bom som.

-É, agora, o canalha tá na cadeia. Estampado no jornal: trancafiado vereador pedófilo.

Saem do cemitério, seguidos um pouco mais atrás por uma sombra.

Oi, Hud, aqui é o escritor. Alguém anda interessado em seus movimentos. Cuidado. Vá pra casa correndo e só saia quando a poeira baixar..Mas o que estou falando? Eu sou apenas um autor. Não posso me meter em seu mundo. 

- Acho que ouvi uma voz - diz Hudson.

Alma o abraça forte.

- Impressão.

Valdo teve a mesma impressão de Hudson. Ouvira Deus?

No outro dia, vemos Alma, de quimono, abraçada a Hudson, que a visita na academia onde a namorada treina. 

É dia de comemoração do registro da academia como pessoa jurídica. Todos estão felizes e vibram, em algazarra.

Hudson está preocupado.

-Temos de tomar cuidado.

-Não vai ser fácil.  Tamos mexendo com um político e empresário que tem muito poder. Nas campanhas, só dá o dinheiro dele.

- Onde tá o Valdo?

- Foi visitar o noivo. A essas horas, devem estar no maior love.

O dia corre mais uma vez e o grupo de jovens está na sede de sua ONG. Uma ONG que luta pela cidadania e inclusão social.

Alguém sobe as escadas.  Há susto em todos. TOC TOC TOC TOC TOC. Mas, quem entra, abruptamente, é apenas Valdo e mais dois amigos.

Os três jovens entram pelo corredor. Todos se cumprimentam e se encaminham para a favela onde Alma mora.

Ao chegarem lá, não percebem Cassiano, o empresário mafioso, por ele estar bem disfarçado dentro de um fusca velho parecido com o do tio de Alma.

Cassiano, o empresário denunciado pela ONG de Hudson, coloca a mão esquerda cheia de anéis sobre a porta do carro. Logo percebe a burrice e recolhe.                   

Dentro do cortiço, Hudson orienta a câmera de seu amigo Valdo.

-Valdo, focaliza bem, rapaz. E vê se não treme muito. Você tá filmando o cara mais feliz do mundo.

-Sei, sei. Ele encontrou a dona do seu coração e brevemente se casarão e darão uma festa na Escola das Nações Unidas, em meio a sambas de raiz e, claro, centenas de cervejas zero grau, geladas na Antártida.

-É isso aí. Gostei e você vai ser o meu arauto.

Hudson ajeita o cabelo, faz pose de galã e dá um giro de dançarino.

-Capricha no close que minha mina já vai chegar da cabeleireira e tenho que causar boa impressão.

-Ih, pirou?

Alma vem chegando sorridente. Cabelos pretos, longos, corpo de mulata no viço da juventude. Cumprimenta os vizinhos. De repente, se assusta com um grito.

Uma menina foge da casa de um vizinho. Está com marcas de cintadas e corre ao seu encontro.

O pai sai com as cuecas à mostra. Está com as mãos sangrando.

Um motoqueiro se aproxima devagar. Tem tempo suficiente pra sacar de uma metralhadora portátil e varrer algumas vidas.

Após a varredura, quando obtém a certeza das mortes de Hudson, Valdo e Alma, aproveita mais o tempo, pára pra fumar um cigarro, e, tranqüilo, craqueado-zen, arranca em fuga.

Balas perdidas pegam pai e filha. A bala que atinge o pai pega de raspão. Já a menina é baleada mortalmente. O pai chora, apertando a filha nos braços. 

Enquanto os fatos se acomodam, uma roda de fusca esmaga uma boneca de modo bem lento, sádico mesmo.

Guiomar, que estava num barzinho ali perto, perguntando sobre moças que queriam seguir a carreira de modelo, atraída pelos tiros, se aproxima do casal morto. De início, olha por curiosidade. Mas algo lhe chama a atenção: a marca no pescoço de Hudson. Seu coração acelera. Ela não quer acreditar. Se lança para Hudson, que tem o peito banhado de sangue. Guiomar grita, chora, até quase estourar os pulmões. Pietá. Pietá. Pietá. Ó, Pai, tende piedade das mães desesperadas!

Como sou mau com os maus da ficção, pois tenho o poder do criador, e para compensar a falta de poder com os maus da vida real, desvio o mafioso de seu destino e dirijo seu fusca a trombar mais adiante com a moto daquele assassino de moto, levando-os à cidade dos pés juntos.

“E era uma vez a vaca vitória, caiu na cama e quebrou a história.”

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