sábado, 30 de novembro de 2013

CHUVA DE SALIVA

Ele de trapos, ela de branco.
Testas meladas, suor lubrificando.
“O mundo mais burro e cego? Dentro e fora?”
Perguntou pra ela. Bebeu e comeu.
Ela: puta, rosto queimado.
Ele: bosta de pombo no ombro direito.
Ela: muda, rosto parado.
Pareceu a ele que ela fez sinal pra um orelhudo.
“Que é isso? Tu tá comigo. Esquece seu proprietário?”
Tirou o revólver da cintura, apontou pro cafetão, e Tum Tum Tum.
Ele falou: tá ligada, prestando atenção?
Ela imóvel.
Ele: o absurdo está no saco roxo do mundo velho!

“Chapeleiro Maluco no País das Maravilhas? Já ouviu falar? Hein? Meu negócio era chá. Sabe, eu disfarçava LSD no chá.”

Com os dedos, alisa o pescoço, fincando as unhas.

“Olha só quanta sujeira no meu pescoço enrugado! Aposto que é mais limpo que o seu! Você parece com a minha sumida Rainha, sabia? Só que ela era tarada por cabeças! Gostava da minha. Sabe quem tomava chá comigo? O Wittgenstein. Gostava mesmo da língua de Alice. Alice, que puta saudade dela, foi minha segunda. A primeira foi a Rainha. Quando a Rainha descobriu, ai ai. Nem te conto. Você não quer comer um salgado? Come, sua merda. Seu cliente morto não vai se espreguiçar mais. Tu vai ficar sozinha nesse inferninho. Não vai chorar? Parece até que vejo sua mãe: filha, cresce pra trabalhar num inferninho nojento até sua morte. E nunca perca o chapeuzinho vermelho. Não pensa você que me engana. Esse teu cliente era o coelho do País das Maravilhas! Reconheci pelo colete e pelo relógio. Ele já tentou me roubar Alice. Tentou se esconder com ela na floresta de copas. Então, atraí ele com minha cara risonha e dei-lhe uma surra de peixeira. Combinei com o Gordo e ele expulsou o coelho pra bem longe. Foi com surpresa que encontrei ele aqui. Tive de me esconder. Por isso estou assim, disfarçado de capim, pra ninguém notar. Alice tinha um corpo maravilhoso. Chamava muito a atenção. Tive de trancafiá-la numa torre, onde ela deixa o cabelo crescer, fazendo tranças maravilhosas. Peguei ela diversas vezes tentando fugir. Tive de contratar vários prostitutos para deixá-la mais sossegada. Nunca mais tentou fugir. Todo dia ela se acaba de sexo e de chá. Claro que a cada novo dia arranjo para ela novos putos. Quando saem da torre, mato-os. Sabe como? Criei-os com minha imaginação. Mato-os da mesma forma, desimaginando-os. Está vendo esse revólver? Só alguns o vêem. O coelho morreu porque viu com a imaginação. E sabe por que você me vê? Porque você usa a imaginação. Por que não tira esse seu chapeuzinho? Eu não existo, você não existe, os ratos à nossa volta não existem, o País das Maravilhas não existe, a Rainha de Copas não existe, Napoleão aqui do lado não existe, e se você insistir em ficar muda, acabo com tua raça. Tá duvidando? Tá duvidando? Tá ou não tá? Eu te estraçalho com isso aqui, ó. Isso aqui é uma cabeça, tá entendendo, sua doutora Chapeuzinho de bosta?”

Ele falava cuspindo. Fazia chuva, essa é a verdade. O senhor da chuva bucal.
Ela anotava. Era psiquiatra de respeito. 
Chegou uma hora que ela teve de tirar o jaleco vermelho todo molhado de saliva prometendo a si mesma nunca mais voltar naquela merda e chamar os enfermeiros para dar uns choques no maluco. 
O jaleco era novíssimo. Ia ter que dar pra caridade.


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