sábado, 30 de novembro de 2013

O AFETO QUE LHE RESTA



Chamavam-na de Astronauta . Gostava de colocar plásticos dentro das roupas que vestia. Começara pela calcinha. Depois sutiãs. Logo, logo, estava enfiando sacos de supermercado entre tudo que vestia e a pele. Pra ficar mais....Ela nem sabia pra quê. Só que sentia-se imponente, menos invisível. Ela não sabia, mas o cheiro fétido que exalava já fazia isso.
Chegara ali, há uns quatro anos, sem esperança. No começo, a vontade de dar um fim a tudo. Antes de ali aportar, fora sócia de loja de tintas. Participara de movimentos de reivindicação política. Corretora de bolsa de valores. Ou seja, uma vida que jamais daria a entender onde fora parar. O que acontecera? Ela só tinha lapsos de memória. Não distinguia fácil a diferença entre o que era de si ou dos outros eus que enxergava. Seria sua memória uma criação aleatória? De onde viera mesmo?
O beco onde chegara: uma caverna de cegos de Platão um pouco bêbados de tortas existências.
Enrolado no começo do beco, coberta vermelha, o Zé Fedido. Bebia e se drogava com danones vencidos. O mais miserável. Todos perderam a confiança nele. Certa feita, entregara um monte de amigos à polícia. Dizem que pra encher o currículo de um filho delegado, que não estava nem aí pra ele.
O Cachaça. quase no meio do beco, era um ladrãozinho masoquista. Roubava na cara do lesado. E só tinha uma perna. Fazia o roubo mas não corria o suficiente. Como, né? Este o motivo das cicatrizes. Quando lhe batiam, não tinham dó. Vezes, gostava. Um modo de compensar a invisibilidade. "Pelo menos assim me notam".
Do lado da Astronauta, um cachorro. O "De Lado". Pois andava meio de lado, de tanta porrada nas ancas e nas patas. Principalmente, daquele açougueiro que todo o beco chamava de Japa-Filho-da-Puta-Rasgada. De Lado gostava de brincar com ela. Gostava especialmente de se encostar à sua perna direita. Era a perna mais cheirosa, com menos feridas. Mas chinchava um pouco a esquerda. As pernas eram as suas torres gêmeas, como dissera o Velho.
Ela voltou do centro, hoje, dia do jogo de Brasil e México,meio tonta. Encara o Flor-de-merda, mendigo bicha que dorme no fim do beco, onde tem um espelho grande que ele pegou no lixo. A quem o chama de bicha diz:. "Bicha não, MULHER, E das tesuda" ele/ela dizia....Fora queimado em quase todo o corpo num dia de Natal. Na época, todos tinham de ficar de olho nele. Começara a falar sozinho. E a andar nu. Quase o queimaram novamente. Hoje, voltou a ser flor, embora de m....
O Maluco às vezes dorme com o Flor. Também fica no fim do beco, onde se aproveita de um colchão ortopédico do residente anterior. Diz, pra ferir os sentimentos do outro, que o Flor não chega aos pés do seu bonequinho número um. Um bonequinho que vive com a boca aberta. Ao qual chama de "Meu Político". Quando está apertado, enfia o negócio dele no boneco e mija dentro. Quando está excitado, a mesma coisa. Fica uns vinte minutos num movimento de ir e vir. Durante o dia, anda descalço pela rua, arrastando seus bonecos e segurando a calças pra não cair.
A Astronauta tem saudade do Velho. Era tão bom. Antes das ruas, ele já teve filho, tinha cátedra em Universidade, era muito respeitado. Um dia apareceu no beco sem mais nem menos. Ninguém soube o que acontecera. Ele não era de muita conversa sobre si mesmo. Porém, pra ela ele dizia alguma coisa. Ficara ali uns dois anos. Contudo, certo dia, desapareceu do beco. Ela procurou ele em todo lugar. O diabo é que ela se apaixonara pelo Velho. Como fora deixar isso ocorrer? Gostava de ouvir suas histórias. Com ele, aprendera a falar com biquinho o nome "La Fontaine". Ela gostava de fazer-lhe carinhos. Segundo ele, a única que conseguia erigir o seu "locus picus".
Um dia, ele a levara perto do Museu da Biblioteca e descreveu pra ela tudo que tinha lá dentro. Nem precisou entrar. Ela fechou os olhos e imaginou.
Por onde ele andará? Terá voltado pra casa? A Assistente Social o terá ajudado? Semana passada, ela jurava que o vira dentro de um carro importado pros lados da Ponte do Arco Íris.
De Lado acordara hoje de língua estendida e pingando. Antes de sair, ela o renegara, mas agora, na volta, ela se arrependera. De Lado se aproxima de suas torres gêmeas. A Astronauta desnuda o espaço de suas torres até os joelhos. Ela sabe que este é o afeto certo que lhe resta.

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