A porta bate. Repórter na TV relembra Getúlio Vargas lendo
famosa Carta-Testamento. Baixinho, música de Beethoven.
Mais uma vez as forças e os interesses contra o
povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam,
insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa.
Conflito doméstico. Pega a outra pelo braço.
-Por que você é tão bonita? Vi como a fulana te olhava. E tu
dando confiança.
-Para de me sufocar!
Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha
ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e
principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de
decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros
internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de
libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei
ao governo nos braços do povo.
A
campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais
revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros
extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário
mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na
potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a
funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o
desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.
Desvencilha sem dificuldades.
- Quer saber. Tou cheia. A gota d’água. Nossa árvore já deu
fruto. E morreu. Hora do testamento.
Tinha mais beleza. Menos músculos porém. Leva um safanão em
câmera lenta. A outra:
- Bate mais.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora,
resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio,
tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se
queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de
rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro,
eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco.
Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a
fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por
vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força
para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa
bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa
consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo
com o perdão.
A vítima, mão na cintura, coxas finas, bufando, estalando
mandíbulas. Língua sangrando.
- O quê?
Uma faca perto. Servira pro bolo. Melada de chocolate. Ao
lado de um consolo.
- O que o quê?
Olhos fuzilando. Punho direito se ajeitando para o porte da
lâmina.
E aos que pensam que me derrotaram respondo com
a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas
esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício
ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei
contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado
de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos
dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte.
Nada receio. Serenamente, dou o primeiro passo
no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”
- Ah, se eu pudesse prever.
- Esse mundo é mesmo assim. Porca magra não tem rim.
- Você deu o bote, eu caí.
- Você não. Eu sim.
- Agora, fica aí, espalhando o sacramento.
- Um bagulho, graças a ti.
No chão, uma revista erótica mostra uma imagem de Calígula
fazendo cuspindo no pênis do seu cavalo.
- Me reduziu a nada.
- Peço o penico e entrego o disco do Pitchulinha. Tchau.
- Espera. Eu vos dei minha vida.
- Agora, vos ofereço a minha morte. Morreram meus sonhos
contigo.
Há muito, a relação perdeu o brilho, rompeu as comportas,
arrebentou o cabaço.
A outra não aguardou.
- Depois, volto pra pegar as coisas.
-Não sai assim, não. Desliga a porra dessa TV!
Assumiram sua condição lésbica, enfrentando a todos. Mas foi
indo, foi indo, gelou. O esfriamento foi paulatino. Surgiram ciclones,
furacões, as lavas do vulcão do desinteresse tomaram tudo.
Rosilene ficara sem gosto para Jovenilda.
Jovenilda, na janela, esquece com facilidade. Flerta com a
empregada de buço fino e pernas grossas, na sua medida.
Ela não percebe o avião desgovernado que avança na direção do
seu apartamento.
Beethoven: TAM TAM TAM TAM.
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